segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Era uma vez uma novela mexicana

A noite estava quente e a cidade pulsava com vida e animação. Os grupos de jovens sucediam-se uns aos outros sem chamar atenções. Eles os cinco (sete se contarmos com as duas garrafa de whiskey) não eram excepção. Tudo parecia correr sobre rodas até que no fim da noite, Miguel olha para trás, por entre o ar enevoado e o vento que se faz sentir só no seu equilíbrio e se depara com o seguinte espectáculo: Ricardo, depois de ter bebido sozinho uma garrafa de whiskey, olha de forma lenta, demorada e eufórica na direcção de Mauro. Nessa altura percebe que as duas meninas que os acompanhavam desapareceram à primeira oportunidade (consegue vê-las ao longe agarradas a um rapaz alto e bem disposto... A sua cara não lhe é estranha). Ricardo continua a olhar para Mauro enquanto este acaba de beber a última garrafa, de um só trago. Miguel percebe o que se vai passar a seguir mas não quer acreditar.
Ricardo atira a garrafa ao chão e manda um murro a Mauro. Não há surpresa da parte de Miguel - o mesmo não se pode dizer de Mauro. Este levanta-se cambaleante do chão (o vento também o ataca) e olha com ar ameaçador para Ricardo que não consegue esconder o seu imenso sorriso de satisfação. Miguel pensa para si que durante toda a noite andou enganado, convencido de que eles poderiam ser amigos. Não podia estar mais errado. Nem ele sabia até que ponto.
Enquanto Mauro luta para descobrir um fio condutor no seu pensamento que lhe permita discutir com Ricardo este empurra-o contra a parede e dá-lhe um beijo longo e demorado. As pessoas passam na rua nessa quinta-feira em Coimbra, em frente ao TAGV. Enquanto Mauro, sem reacção, conhece um novo aspecto das relações inter-pessoais dos jovens, todo o seu curso passa por ele. Caloiros, doutores, veteranos... Havia jantar de curso e dirigiam-se todos à AAC. O choque inicial espalha o silêncio por entre o grupo maioritariamente trajado. Como se não bastasse, todas as raparigas bonitas de Coimbra e arredores decidem ir ao TAGV tomar café. É nessa altura que Margarida se depara com a cena bizarra que se desenrola perante um público cada vez maior e mais animado.
Não tarda para que se comecem a ouvir aplausos e assobios. Margarida apercebe-se nessa altura de que Miguel está na fila da frente, um tanto ausente psicologicamente. Dirige-se a ele, puxa-o por um braço e senta-o num canto de onde continuam a ver a cena.
Quando o beijo parecia nunca mais acabar, Ricardo percebe que perdeu controlo sobre o seu consciente e olha em pânico para a assistência e para Mauro. Este ainda não conseguiu encontrar um único neurónio funcional... O olhar de Margarida e Miguel cruza-se e ele foge para o TAGV. Deixando Miguel nas escadas, encostado à parede e tapado com uma capa, Margarida corre atrás de Ricardo, tentando evitar que ele se feche numa casa-de-banho e corte os pulsos.
Ao entrar no TAGV, Margarida percebe que vai ter de entrar na casa-de-banho dos homens. Oh well, não se deixa um amigo a definhar numa casa-de-banho só porque as regras sociais dizem que não se deve entrar em determinado sítio. Ricardo não está lá. Margarida sai e corre para o telhado mesmo a tempo de impedir que Ricardo decida terminar com a sua vida e salte. Depois de um abraço silencioso e palavras de paz e conforto Ricardo pára de chorar e enrosca-se num canto. Aparece Leonardo, o seu amigo viajante que por acaso tinha voltado nesse dia e chegara a tempo de assistir a toda a cena. Ricardo não consegue aguentar mais e confessa-lhe todo o seu amor e desejos reprimidos. Leonardo por fim admite que nunca teve namorada, era tudo uma grande mentira para encobrir a sua homossexualidade. Olham um para o outro, sorriem e Margarida percebe que é altura de ir. Nas suas costas o par abraça-se e beija-se.
Cá em baixo Mauro ainda não encontrou dois neurónios funcionais e também ainda não largou a garrafa vazia. Margarida chega a tempo de o ver olhar para ela com ar perdido. Miguel está no mesmo sítio, a dormir tapado e agarrado à capa, a sorrir. Com alguma dificuldade Margarida e Miguel conseguem meter Mauro num táxi. Cerca de cinco euros depois atiram-no para a banheira. Margarida ajuda Miguel a deitar-se e tapa-o. Ele adormece e ela vai para casa. Pelo caminho pensa nas voltas que a vida dá e remata com o pensamento "Eu sabia. Acerto sempre". A Lua Cheia está laranja apesar da hora adiantada da madrugada e o vento quente acalma-a. Não lhe apetece ir para casa mas sobe a rua consciente de que se vai deitar e dormir. Amanhã quando acordar há mais uma aventura para viver.

The End

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

O bosque proibido

Lembram-se desta princesa? Os cientistas descobriram outra carta que ela deixou! A carta mostra um bocado do que ela sentia por uma das pessoas, ela escreveu um diálogo talvez para nunca se esquecer de como sofreu naquela madrugada... É uma carta brusca e poderá causar uma ou outra lagrimita:

«O dia acordou calmo, sem uma núvem no céu e com os primeiros raios de sol a tocarem na lagoa do castelo. Eu nem tinha dormido, estava ansiosa demais pelo nosso encontro! Algo me dizia que naquela madrugada o ia encontrar sozinho e íamos ter um momento de privacidade... Estava quase a chegar ao nosso lugar secreto quando ele me pega no braço.
Vem comigo, o meu cavalo e o meu criado estão a descansar...
Eu fui, esta desculpa foi usada já várias vezes! Convidei-o a ir apanhar flores, era o próximo e derradeiro passo na nossa rotina secreta mas qual é o meu espanto quando recusa! Em vez disso pediu-me para o acompanhar até ao mega-buraco que fazia a raíz da árvore mágica onde o cavalo e o criado descansavam. Estranhei... O criado não devia saber que eu ali estava!
Ainda está fresco... Vem para perto da fogueira.
Vem comigo apanhar flores! O bosque está lindo a esta hora...
Não posso... O meu coração pregou-me uma partida e está a fugir ao meu controlo!
Mas isso até é bom...
Nem por isso! Se ele continuasse na mesma estava agora no bosque contigo... Gosto do que temos e não quero alterações!
Pois...
Deita-te aqui ao meu lado... Vamos conversar. Continuas tão bonita!.. Estás a tornar-te uma mulher linda!
Não digas estas coisas... Não me toques assim, não com eles aqui...
E irmos para a tua casa de campo? A criada ia armar confusão?
Não sei mas podia estranhar ou deixar escapar alguma coisa...
Pois, está complicado hoje...
Entretanto o criado acordou e eu tive de me armar em donzela perdida e inocente. Fiquei sem perceber grande coisa do que se passou nesta madrugada mas sei que havia vários passarinhos a escutar a conversa... Por isso peço que quando alguém descobrir esta minha carta publique um esclarecimento em tudo que é parede, jornal ou revista. Eu sei que o meu espírito vai vaguear po aí e assim pode ler.
Obrigada,
Princesa»


Coitadinha desta princesa... Todos lhe dificultavam a vida...
=(

sábado, 18 de julho de 2009

Pop goes the weasel

Acabara de se escapar outra vez para o seu mundo privado, a sua Boo'Ya Moon como lera algures num livro, o seu mundo escuro, frio e por vezes arrepiante. Porque não refugiar-se entre borboletas e fitas coloridas? Tinha percebido que por mais assustada que se sentisse qualquer outra pessoa sentiria pavor perante a ideia de entrar ali, o que a reconfortava e lhe dava motivação para continuar a ter esta floresta como primeira opção. A promessa de silêncio e calma era neste momento a força que a levava a dar um passo depois do outro e a necessidade de tempo e espaço impediam longos raciocínios.
Entretia-se esta noite como em todas as outras: de pernas cruzadas à beira do lago pegava nas pedras perto de si e atirava-as para o centro do remoinho. Por vezes molhava o dedo ao de leve na água escura e pobremente iluminada pelo luar. Este lago assemelhava-se a um buraco negro e parecia sugar a luz e o barulho.
Adorava este sítio mas desde há umas noites que, apesar de se sentir protegida das preocupações do dia, se sentia vulnerável a uma força inexplicável que surgia com a lua. Hoje tinha a certeza de que o seu mundo privado albergava um intruso. Ouvia risos histéricos vindos de longe.
Hoje ouvia-os mais perto. Hoje ele corria em círculos à volta do lago, escondido por entre a erva alta e atrás das árvores. Por vezes aproximava-se mais provocando-lhe arrepios gelados. Sentia o pânico a aparecer dentro de si. Aquele já não era o seu mundo. Ele estava ali apenas para o provar.
Corria cada vez mais rápido à sua volta e o seu riso era cada vez mais feliz e cada vez mais alto. Cantava, agora.
"All around the cobbler's bench the monkey chased the weasel..."
A água do lago girava rapidamente acompanhando o seu ritmo cardíaco. Atrás de si surgiu uma sombra. Sentiu uma respiração ofegante no seu pescoço e a voz tornou-se um sussurro aos seus ouvidos.
"... the monkey thought 'twas all in fun..."
Fechou os olhos e susteve a respiração. A voz já não era mais que um murmúrio.
"... pop goes the weasel!"
Ouviu a gargalhada, sentiu as mãos a atirarem-na para a água e soube nesse momento que tinha sido expulsa do seu próprio mundo. Não resistiu à força da água. Não valia a pena.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Chuvas

Trovejava o céu acima das suas cabeças, despejavam-se as nuvens sobre as suas frontes, caía o desespero sobre os seus corpos, o cansaço abatia-se sobre as suas mentes. Haviam sido dias, semanas de luta constante, uma luta descomunal de constante reconstrução e destruição. E nenhum dos dois cederia. Acabaria primeiro o tempo antes de um deles cair, findaria o espaço antes de um deles desistir. Entre os dois apenas o vazio, a distância de uma luta travada. Pedaços de dor encontravam lugares nos seus corações, lugares de dor albergavam pedaços de luz.

Mas a luta havia findado e a única coisa que agora lutava eram os seus olhos, as suas vontades.

Viraram costas um para o outro e seguiram o seu caminho. E agora não era apenas o céu que chovia. Não era só o céu que bradava.

terça-feira, 7 de julho de 2009

Laranja-poente

Era uma vez um montinho de lama, lodo e algas podres, disforme e mal-cheiroso. Era um agregado nojento de matéria em decomposição, um lar agradável de bactérias e fungos patogénicos e um iman eficaz de mosquitos infectados e insectos asquerosos.
Movia-se pelas ruas, espalhando o caos, o fedor e a sujidade. Entupia vias, bloqueava soluções e impedia pensamentos.
Ninguém poderia prever que este lixo era um ser vivo capaz de elaborar raciocínios por isso ninguém percebia porque é que ele, sem hesitação, depois de ter atravessado a cidade de uma ponta a outra, mergulhava no rio.
Não demoraram a perceber que a água que recebia aquele monstro nunca mais seria a mesma. O que eles nunca iriam perceber era como é que uma raposa tinha saído tão limpa de dentro daquela água.
Por razões do destino a única pessoa a ver essa raposa foi a criança do vestido vermelho, cabelo preto e ar triste a quem ela pertencia. E ela percebia perfeitamente tudo o que se tinha passado nessa tarde. Abraçou a raposa, contou-lhe um segredo e voltaram ao início.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Névoa

Preso à cadeira, o corpo já não lutava. Tinha perdido toda a vontade, toda a esperança, o seu mundo tinha ficado de pernas para o ar. O seu cativeiro durava à pelo menos doze horas, durante as quais Ele se alimentava, Ele se aliviava. A pobre garota já não sabia o que fazer, o que dizer. Era este monstro o seu namorado?
Ela lembrava-se do início da relação... da corte tímida dele e dos seus gestos envergonhados. No final tinha sido Ela a convidá-lo a sair. Tempos áureos... Tinham sido felizes, tinham sido um casal, mais que isso talvez, tinham sido Um.
Mas agora Ele revelava o seu lado sombrio. Um lado mais escondido que a poucos se revelava, e pelos vistos os que o viam não ficavam para contar a história dele...
E as forças delas esgotavam-se. O sangue escorria-lhe pela cara proveniente dos dois longos cortes que Ele lhe tinha infligido na testa e por baixo do olho. O cansaço apossava-se-lhe da mente como uma névoa morna... A dor deixava de existir. Agora só cansaço. Cansaço e paz. A morte estava próxima. O seu derradeiro suspiro.

e o Silêncio.

sábado, 20 de junho de 2009

Done.

A luz laranja-poente que invadia aquele espaço parecia deslocada da situação. Uma espécie de silêncio reinava ali dentro e tudo parecia ter uma coloração acinzentada. Tudo execepto aquela luz a tornar-se pálida que já mal iluminava a caixa que tinha em mãos.
Se alguma vez existiu um objecto que desafiasse as leis do universo teria de ser aquela caixa. Mais do que partículas atmosféricas ou moléculas de supostos materiais tinha sido ali guardado tempo. Era possível encontrar anos de uma vida naquela pequena área. Guardado como uma arca de tesouro o pequeno bau encerrava toda uma etapa de crescimento da vida de alguém e tal como uma arca de tesouro parecia encerrar uma maldição, um qualquer feitiço. Ela não acreditava em nada disto, claro, mas a verdade é que se sentia presa àquela caixa, como um âncora. Sentia que era altura de se ver livre do seu conteúdo. Seria a primeira pessoa a destruir tempo. Mas não o podia fazer ali, havia demasiada agitação, não se conseguia concentrar. Pegou na caixa e saiu porta fora, passou na cozinha e deitou as mãos a algo. Entrou no carro e conduziu para longe, para o mar. Na praia ajoelhou-se e deixou cair o fósforo dentro da caixa. Via o tempo a ser queimado, via as folhas de recordações a arder. Ardeu tudo. Talvez algo novo venha a renascer das cinzas.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Parte III - Ana na Faculdade das Maravilhas


Era uma vez uma menina chamada Ana. Antes chamava-se Alice mas aos 18 anos decidiu mudar de nome.
Numa bela tarde de Primavera caiu num buraco. Encontrou o Coelho Margarido que andava a apanhar cogumelos mágicos.
- Queres um?
- Não, obrigada. Só como cogumelos depois do Chichorro os ter identificado. Além disso estou a falar com um coelho, já chega de drogas por hoje.
- Então toma um bolinho de chocolate.
Quando acordou viu um lobo - o mesmo das outras histórias - com um relógio gigante.
- Que horas são? - perguntou ela.
- São horas de te comer.
- Está bem!

The End

Rita e Xumé

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Mas ainda hoje tem um vazio que não sabe explicar...

Estou?
Olá.
Que se passa? Que horas são?
Desculpa ter-te acordado... Vou-me embora, vou sair daqui, já não aguento mais!
Hãn? Mas..
Não dá mais, tudo aqui me lembra de ti! Todos os bancos de jardim, todas as esplanadas, todos os casais... Tudo me lembra do que pus em causa por mais uma (e outra, e outra...) noite na tua companhia, por querer sentir o teu cheiro outra vez, por precisar do calor dos teus lábios e da determinação do teu abraço!
Desculpa...
Não é "desculpa", devias ter dito que ia chegar a este ponto! Tu sabes como sou, tu sabias como ia acabar mas mesmo assim preferiste não me impedir, quiseste vir ter comigo vezes sem conta!
Eu não conseguia pensar no "acabar"!
Conseguias sim! Oh Carlos, por uma vez na vida enfrenta as coisas! Não fujas com desculpas e mentirinhas, sê sincero e diz o que sentes...
Eu quero fugir contigo mas não tenho coragem de deixar tudo para trás. Vou ficar fechado em casa com antidepressivos durante 2 meses e nunca me vou perdoar por teres fugido! Eu sou culpado por deitar fora a pequena dor que sentia para a substituir por esta, por ter acreditado que valia a pena arriscar!
Adeus.
Não vás! Fica por favor... O que tenho de fazer?
Volta atrás no tempo e nunca me faças aquele telefonema. Nunca me ligues a dizer que tens saudades minhas e que só precisas de me ver mais uma vez...
Por ti?
Por nós...


Ele acabou o curso e construiu uma Máquina do Tempo. Ele fez com que este diálogo nunca tivesse acontecido porque a amava assim tanto. 


domingo, 26 de abril de 2009

O labirinto de Ariadne.

Ariadne olhava-se ao espelho e rodava a saia do vestido de preguinhas rendadas. Era uma menina crescida, agora, e como tal tinha obrigações a que não podia escapar, o que era possível perceber pela expressão apática da sua cara. Era uma espécie de sofrimento ter de acordar cedo para fazer algo para que não se sentia motivada. Só o olhar suplicante da mãe a levava a sair de casa. Olhou pela janela do quarto, para o extenso jardim verdejante lá fora. Suspirou, ajeitou o laço no cabelo e saiu de casa. Ter dez anos não era nada fácil...
A viagem de carro era extremamente desconfortável e entreteve-se a pensar como seria o mundo quando tivesse vinte anos. Dez anos era muito tempo... O futuro tinha de ser diferente! Se calhar já nem iriam existir carros...! Mas se existissem carros em 1941 de certeza que seriam infinitamente mais confortáveis. Nem sequer dava para apreciar a paisagem com tanto solavanco e estava a ficar terrivelmente enjoada... A única coisa que conseguia perceber das imagens tremidas que recebia através da janela era que estava uma linda manhã de Primavera o que só veio acentuar o desgosto por ter que ir à missa.
Não percebia nada de latim, não achava piada nenhuma a ter que repetir uma ladainha infinita numa língua que não entendia e todo aquele ambiente era depressivo. Ninguém sorria, tinha de estar sempre calada e não podia brincar com os outros meninos. Queria ir brincar para a rua, apanhar ar, gritar, cantar. Ali as músicas e o silêncio eram igualmente pesados.
Quando era mais pequenina pensava que as pessoas estavam tristes pelo senhor pregado na cruz. Não percebia porque é que as pessoas olhavam para o chão em vez de olhar para ele. Seria para fingir que ele não estava lá, a sofrer? Ou para não terem de o ajudar? Se calhar era difícil tirar aqueles pregos. Se calhar também não se queriam sujar no sangue. Às vezes tinha vontade de ir lá acima falar com o senhor da cruz, perguntar se estava bem e tentar ajudá-lo mas tinha medo porque havia o senhor mau que falava uma língua que não entendia (o padre, veio a avó a ensinar-lhe mais tarde) e além disso a mãe batia-lhe se ela sujasse o vestido de domingo.
Depois de ter percebido que era uma imagem esculpida em pedra e não uma pessoa a sério começou a indagar a causa para tamanho castigo. Se calhar tinha percebido mal, se calhar ele é que era o homem mau. Se calhar era um ladrão ou um assassino e o padre estava à frente dele a falar latim para nos alertar para os perigos de existirem pessoas más que nos podem fazer muito mal. Nunca tinha ouvido falar de um castigo assim.
Estes pensamentos de criança tinham sido a sua crença há dois anos atrás. Mas a avó explicara-lhe o que se passava: nós é que éramos as pessoas mal comportadas e senhor da cruz chamava-se Jesus e tinha vivido há muitos anos. Até hoje nunca existiu ninguém como ele. Era o bem mas não era um anjo. Era uma pessoa como nós mas conseguia fazer coisas que nós não conseguíamos. A avó chamou-lhes milagres e contou-lhe alguns. Ela ainda não percebia muito bem como é que os milagres funcionavam mas tinha quase a certeza que era uma espécie de magia misturada com curas dos médicos porque ele conseguia por os cegos a ver.
A avó também lhe explicou que Jesus estava na cruz porque era tão bom que se sacrificou por nós, para nos salvar, porque nós é que devíamos ser castigados. Ela não percebia isto muito bem. Na escola, quem fazia alguma coisa mal levava reguadas nas mãos. Não havia um menino que fosse castigado por todos eles. Nem fazia muito sentido...
Apesar de tudo o que a avó já lhe tinha explicado ainda havia muitas coisas que não percebia. Por exemplo, as pessoas falavam muito de Deus. Deus não era uma pessoa. Era Deus. A avó disse-lhe que era como o ar: estava por todo o lado mas não o conseguíamos ver. E Deus era também o próprio ar. Ela não percebeu, então a avó explicou-lhe que Deus era pai de Jesus mas que não era um pai como os outros, o que a deixou muito confusa. A avó disse-lhe que Deus é quem decide se vamos para o inferno ou para o céu quando morremos. A ideia de alguém existir e poder decidir isso assustou-a muito. No outro dia tinha comido um rebuçado às escondidas da mãe! E às vezes sujava as meias brancas e arranhava os joelhos quando brincava no jardim! Se calhar ia para o inferno...! A avó acalmou-a e explicou-lhe que só pessoas que fazem mesmo coisas muito más são enviadas para o inferno. Além disso Deus não toma decisões de ânimo leve, porque Deus é Amor. Ela não sabia o que isso queria dizer.
Pensava em todas as conversas que tinha tido com a avó. Tinha saudades dela. Esperava que ela estivesse no céu. Ia ter muito calor no inferno, além disso não devia ter piada nenhuma ver o que se passa aqui através do chão e da terra. Mas a avó era boa pessoa, de certeza que estava no céu. A mãe tinha-lhe dito que sim, que estava. Ela ficava feliz por isso mas cada vez tinha mais dúvidas e perguntas e tinha a certeza que a mãe não lhe saberia responder. Precisava mesmo da avó...
Com dez anos já era crescida o suficiente para perceber que não se devia portar mal porque Deus castigava e tinha de estar em silêncio na missa por respeito a Jesus. Mas ainda não percebia muitas coisas e a que hoje a incomodava mais era esta: estavam ali muitas pessoas tristes porque alguns familiares seus já tinham morrido e outras pediam ajuda porque tinham vidas muito complicadas. Aquele era o momento do dia em que supostamente não deviam pensar nessas coisas e deviam simplesmente ficar felizes porque estavam perto de Jesus, mas a verdade é que adoravam uma imagem de tortura que as recordava de como eram pecadoras e deviam ser castigadas. Ou seja, por cima de todo o sofrimento que já sentiam vinham também ali arcar com uma culpa que vinha de um acto cometido há mais de mil anos atrás quando elas ainda nem sequer tinham nascido! A avó tinha-lhe explicado que a fé significava 'acreditar' e que as pessoas tinham fé em Deus, acreditavam em Deus, porque ele era poderoso e podia ajudá-las e dar-lhes felicidade. Ela já tinha dez anos e ao fim de tantas vindas à igreja não via ninguém feliz. O padre continuava a ralhar, ao fim de dez anos, e as pessoas continuavam com o seu ar cinzento e pesado, às vezes com o olhar perdido no espaço, enquanto pensavam nos muitos problemas que tinham para resolver. Isto não fazia sentido para ela. Porque não acreditar no sol? Porque não ter fé nele? Ele nunca nos falhava. Depois da noite vem sempre o dia, ele está sempre lá ainda que não o consigamos ver, tal como Deus. Porque é que estas pessoas tinham tanta fé num Deus que deixou que matassem o seu próprio filho? Isso não era crime? E foi justo castigar um pelas culpas de muitos? Valeu a pena?
Tanto pensamento e dúvida fizeram o tempo passar mais depressa e quando deu por si a missa já tinha acabado, a viagem de regresso a casa foi tão torturante como a primeira e assim que se viu livre correu para o jardim. Estava mesmo um dia lindo! O céu estava azul, o sol brilhava bem alto!
- Mãe, tenho fome...!
- O almoço ainda não está pronto. Vou começar agora.
- Demora muito?
- Um bocadinho.
- Então vou brincar!
- Não sujes o vestido!
- Está bem!
Ariadne correu atrás de uma borboleta quando pelo canto do olho reparou em algo a mexer perto dos cedros. Pé ante pé andou nessa direcção com algum medo a formar-se no seu íntimo. Se calhar é só um gatinho perdido, pensou, e acelerou o passo perante o pensamento de uma bolinha de pelo fofinha. Entrou no labirinto. O pai não ia achar piada mas ela ia atravessar só dois corredores, sabia o caminho de volta. Ouviu barulho do outro lado da parede. "Bem, só mais uma, ainda estou perto da saída". Sentiu que o que perseguia se afastava de si mas estava ainda muito perto para poder adivinhar a sua posição. "Vou só até àquela esquina e volto para trás". Deparou-se com duas passagens diferentes e escutou barulho à sua esquerda. "Ainda estou perto da saída...!". Começou a correr ao sentir-se mais próxima daquele ser. "É um gatinho, só pode ser um gatinho...!", pensou enquanto a deslocação do ar lhe tornava a face fria. O vestido prendeu-se num galho e rasgou-se. Ariadne não percebeu e continuou a correr. Repentinamente parou. Ao fundo desse corredor via a sombra escura a mexer-se lentamente, cambaleante. "Aha, eu sabia que te apanhava!". Com as faces vermelhas e o vestido sujo deu a última corrida em direcção ao animal. Era um gato. "Eu sabia!". Mas neste momento era um gato morto. Ariadne chegara a tempo de o ver tombar inerte. Ao seu lado sibilava uma cobra mas Ariadne só a viu um segundo antes de ela a morder na perna.
Gritou de dor mas ninguém a ouviu. Caiu na relva, ao lado do gato, e olhou receosa para a cobra que se esgueirava por baixo da parede de arbusto forte. Pôs as mãos à perna, perto do sítio onde a cobra a tinha mordido. Notavam-se dois pequenos buraquinhos e um fino fio de sangue escorria pela perna. Sentia uma dor imensa e o próprio veneno a circular pelo corpo como fogo a queimar as veias e artérias. Deitou a cabeça no chão e olhou para cima. Via uma estrela no céu. Era já quase de noite. Passara todo o dia a correr pelo labirinto. Estava perdida, não se lembrava do caminho de volta e não conseguia andar. Estava assustada de morte. Olhou para o gato morto ao seu lado e vomitou. "Tenho medo", e começou a chorar.
Cada vez ficava mais escuro e cada vez estava mais aterrorizada. "E se ela volta? E se me morde outra vez?". Estes pensamentos e a dor permanente não lhe davam descanso e mantinham-na em total estado de alerta. Num momento de cansaço lembrou-se da avó e da forma como ela estava calma quando rezava. Decidiu fechar os olhos e rezar. Nunca o tinha feito e não sabia como o fazer. A avó dizia que Deus ajudava quem precisava de ajuda e que Jesus tinha feito isso durante toda a sua vida. Ela precisava muito de ajuda. "Deus e Jesus, estou com muito medo, dói -me a perna e não consigo andar. Quero a minha mamã. Desculpem-me por ter feito mal, sei que não devia ter entrado no labirinto. Desculpem-me por ter sujado e rasgado o meu vestido novo. Prometo que nunca mais faço nada de mal mas por favor ajudem-me! Por favor, ajudem-me! Por favor! Por favor...". Repetiu o pedido por tempo indeterminado e durante os períodos de febre altíssimos que teve nessa noite não cessou de pedir ajuda. De repente despertou e ao abrir os olhos viu que ainda era de noite. Chorou e desistiu de pedir ajuda. Parecia-lhe claro que Deus não estava para a ajudar. Que estupidez, pedir ajuda ao ar. Ela tinha era que pedir ajuda ao sol! Fechou os olhos novamente e pediu ajuda ao sol. "Por favor que seja dia, por favor, por favor... Sol, tu nunca me falhas. Que seja um dia lindo, que os meus pais me consigam encontrar... Por favor!". Adormeceu novamente mas desta feita possuída de uma força de vontade enorme e de um sentido de sobrevivência intenso. Sentiu luminosidade e abriu os olhos. Era de dia.
Ariadne sentou-se, encheu-se de força, e gritou. Gritou com vontade e determinação. Não tardou a ouvir vozes e barulho de machados. Dentro de pouco tempo a parede verde ao seu lado sofreu o derradeiro corte e o seu pai entrou, seguido de cinco ou seis homens que o ajudavam nas buscas. Mais tarde Ariadne veio a saber que pensavam que se tinha perdido no bosque ali perto, nunca pensaram em procurá-la no labirinto. Enquanto lhe contavam esta versão Ariadne só conseguia pensar em como o sol lhe salvara a vida. Não culpava Deus pela ausência de ajuda. Como é possível culpar algo que não existe?

sábado, 25 de abril de 2009

O bicho papão

Escondido debaixo das mantas, o menino aguardava. Envolto em medo o petiz esperava. O peso dos cobertores era um conforto. Lá fora, fora da cama, isto é, o quarto repousava no escuro. Lá fora, fora das quatro paredes, o vento rugia, os ramos das árvores batiam nos vidros (como num cliché de um desesperado filme de terror sem audiência). O tempo não estava para brincadeiras e a tempestade parecia avizinhar-se.
O garoto tremia, receoso, do papão que o viesse buscar. O papão, bicho mitológico de estórias desaparecidas que se parecia alimentar de carne de crianças inocentes, e garotos mal-comportados. O medo, mais que irracional era desnecessário pois se era de crianças que o papão se alimentava, este rapaz não tinha nada a temer. Criança era coisa que já não era ou pelo menos pensava não ser Estava naquela fase da adolescência, a incerteza e a insegurança toldavam-lhe o rumo a tomar, e o menino parecia perder-se cada vez mais nos seus medos. Mas esquecendo a idade do alvo, o gaiato tremia nervosamente, sentindo um tal pânico com nunca tinha sentido, destrutor de toda a possível razão. Resolveu aguardar e a ansiedade lá baixou. Necessitava de ajuda, companhia. Habituado a que lhe aquiescessem aos pedidos, resolveu sair da cama e dirigir-se ao salão na senda de um criado, a governanta ou mesmo o velho mordomo lhe fizesse companhia.
Pé ante pé, na semi-obscuridade, o garoto lá ia indo sem muito medo. Dez passos volvidos e o temor parecia descer. Ao fim do corredor, o medo parecia ter-se evaporado. Eis senão quando uma sombra na escuridão surge de um refugiado canto. O coraçãozinho a palpitar, a pele a suar, os membros do corpo a enrijecer e o miúdo já não saía do lugar. Estranhos rugidos gargalhantes pareciam assombrar a casa. Rangeres estranhos, suspiros abafados de quem não se quer excitar com a presa. Os olhos da criança brilhavam das lágrimas que lhe caíam. A sombra aproximava-se e não havia fuga. Chegava-se a ele como um estranho pano de seda: macio, leve e fresco... O terror apossava-se dos pensamentos do pequenino. O fim estava próximo.

Acordou no meio de sussurros e suspiros seus, encharcado no meio de suor. Estava seguro, estava a salvo, a manhã chegara. Atreveu-se a pôr os pés fora da cama. Nunca chegou a tocar no chão. Debaixo da cama esperava o comedor de crianças.

Porque meus petizes, não é no desconhecido que reside o desafio, não é do papão que devemos ter medo, não é do escuro nem dos ruído da noite... O medo não passa disso mesmo, medo.
O problema é quando nos deixamos tomar por ele. A criança não morreu obviamente. Apenas tropeçou num desterrado brinquedo e caiu de boca no chão. Ninguém o manda ser desarrumado.

Caranguejola

Não iriam acreditar no número de frases que comecei para vos escrever hoje, mas achei por bem ir directo ao assunto, sem rodeios pretensiosos e chatos.
A minha colaboração n'O Colectivo de Contadores chegou ao fim. Não é minha obrigação dar qualquer tipo de justificação, mas sinto que o simples abandono deste blog poderia levar a conclusões precipitadas. Os motivos são os de uma deficiente organização e desleixo em alguns trabalhos. Tendo eu dois blogs em nome próprio e duas colaborações, a gestão do tempo tem sido feita mal e porcamente, o que leva à falta de qualidade em alguns textos, o que não me agrada a mim nem a quem lê, por poucos que sejam.
Assim, e não menosprezando o trabalho daqueles que aqui escrevem, decidi que o "sacrificado" (ou talvez não) seria o Colectivo, já que é um trabalho muito idêntico a outro feito num blog próprio.
Foi um gosto enorme escrever neste espaço, mas decisões têm que ser tomadas, e espero que aceitem esta com a mesma lucidez e pesar com que a tomei.
Podem sempre ir a http://achuvamolhada.blogspot.com, ver como é que estou, mas aqui não voltarei a escrever. "Nada mais a fazer" dizia Sá-Carneiro, "O menino dorme. Tudo o mais acabou."

quinta-feira, 23 de abril de 2009

amo-te porra

Foi numa manhã negra e sonolenta que vi pela primeira vez aquela frase, escrita porcamente a spray azul num bloco de betão ríspido e frio. "amo-te porra", escrita assim, sem maísculas nem pontuação, foi ali pntada durante a noite, por alguma alma apaixonada que quis mostrar os seus sentimentos mais profundos não só à alma amada como também ao pequeno universo de pessoas que passam pela rotunda onde o bloco de betão está instalado.
Alvo de comentários trocistas durante os primeiros dias de exposição, a frase rapidamente se tornou banal, até fazer parte natural da paisagem fria e grosseira das obras de alargamento de uma estrada, em que ninguém parecia mais reparar. Quando finalmente a estrada passou a ter duas grandiosas faixas de cada lado, o bloco de betão desapareceu sorrateiramente, não deixando saudade aos automobilistas, sedentos de velocidade e ultrapassagens.
Não são poucas as declarações públicas escritas no alcatrão da estrada, numa placa de direcção, numa parede, num sinal de trânsito. No entanto, este "amo-te porra" toma um significado especial na sua categoria. Não é pela maneira como foi escrito, felizmente este obedeceu aos cânones oficiais: escrito com spray de pouca qualidade, letra minúscula, mas à máquina, com o mesmo requinte que um "o governo é merda!" ou um "SLB filhos da puta", esta frase apenas difere no seu conteúdo. O normal é haver um nome associado ao verbo amar ou ao seu equivalente na língua inglesa, não uma grotesca expressão de aborrecimento e indignação como é a palavra "porra". Mas é neste ponto que o autor da frase inova: ao não nomear ninguém, não corre o risco de ser humilhado no caso daquele amor terminar, como acontece tão frequentemente na vida. "amo-te porra" é intemporal e impessoal: o ser humano irá sempre amar, quer seja a Maria, a Inês, a Joana, o Manel, o Carlos ou o Francisco. O indivíduo que ali escreveu aquelas singelas palavras não terá provavelmente a noção da sua importância: serviram de riso àqueles que, desde sempre amados, troçam da patetice deste tipo de romantismos; serviram de preocupação àqueles que tomam qualquer inscrição num espaço público como um acto cataclísmico de vandalismo; serviram de consolo aos altruístas que se sentiram felizes por saber que há lá fora gente feliz, que ama; serviram de desgosto aos infelizes, sendo aquelas letras uma provocação à sua solene tristeza.
E pouco mais há a dizer sobre isto, o mais provável é que continuem a surgir risos aquando da memória das palavras escritas naquele local. Mas eu vos digo, aqui sentado numa cadeira de escritório, virado para este crepúsculo nojento, vestido com um robe velho que me pica a pele, que furava os olhos e rasgava a boca por umas palavras semelhantes.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

O homem e o seu cavalo...

O cavalo galopava freneticamente pela floresta. Segundo a segundo a sua velocidade aumentava. Curtos clarões de negro espalhavam-se pela floresta. A única coisa que mantinha o homem ainda em cima do cavalo era o dever porque a força já à muito havia sido consumida. A armadura pesava-lhe, o suor cegava-o, o calor matava-o. Apenas o dever o mantinha vivo. O dever, o maldito dever. A vontade régia que o cingia a um contrato que não queria honrar. Mas o passado não lhe interessava agora.
O cavalo acelerava por entre os carvalhos sem que se lhe fosse dada nenhuma ordem. A mente do homem confundia-se com a mente do cavalo, uma só mente meio homem, meio animal que governava um ser de seis pernas e dois braços que se movia inconscientemente pelas sombras. No alto das árvores, as sombras também se moviam. Mais rápidos do que o olho humano pode processar, os vultos saltavam de árvore em árvore, de ramo em ramo de folha em folha. O peso não os atrapalhava, a matéria não os entravava.
O incauto cavaleiro seguia o seu caminho o mais rápido que podia. Inconsciente do perigo que corria. O cavalo galopava ofegante, consumindo a réstia de energia que tinha. A noite alastrava-se pelo céu como tinta num charco.



Três homens caminhavam lentamente pelo chão da floresta. Seguiam marcas de sangue à muito deixadas naqueles trilhos. Rapidamente chegaram ao seu destino. Dos ramos pendiam restos de homem, restos de animal, uma visão grotesca para o homem comum. O sangue fora-lhes extraído dos corpos como precioso néctar. Nos chão, a escrita dos vampiros avisava:
"Idiota é o homem maldito que julga fugir à maldição. Pois da maldição nem a morte os liberta."

Os três homens entreolharam-se. O primeiro tinha caído. Apenas três faltavam. Aproximaram-se do homem e rasgaram-lhe a armadura com as mãos. No seu pescoço seis pequenos buracos ainda pulsavam. Um pequeno pendente balouçava ao sabor do vento. Eis a primeira chave.
Os três homens esperaram a noite cair. Assim que o último pedaço de sol desapareceu por detrás do horizonte e a noite se apossou do mundo, os homens desfizeram-se na sombra e dirigiram-se ao próximo alvo.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Dream on, girl.

Era de noite e custava-lhe a respirar. Inalava mas o ar não entrava. A atmosfera estava pesada, como que adivinhando uma tempestade mas o céu estava limpo e estrelado. Talvez fosse o calor a provocar essa sensação. Não tinha a certeza mas sentia que as coisas não estavam de todo normais. Avaliava com atenção o céu quando a interromperam.
- Acorda! É Queima!
(Queima...? Mas estamos em Março...!)
- Queima?
- Sim! Primeira semana de Maio, alô! Já não era sem tempo...!
(Maio? Mas ainda ontem era dia 17 de Março...!)
Estava perdida e não conseguia perceber nada, mas era Queima por isso fez o seu maior esforço para esquecer a inquietação que a controlava e obrigou-se a entrar no espírito. Tudo isto tinha o seu Q de louco e não era o comum Q de Queima nem a loucura alcoólica do costume. Parecia um filme realizado por um psicopata.
Estava na Praça, encostada à montra da farmácia, a tentar encontrar algum sentido. Entendia que era o dia do cortejo mas tudo o resto não batia certo. Era de noite e ninguém estava trajado. Além disso não deviam estar nem cem pessoas na Praça. Ainda assim deixou-se estar. Tudo isto devia ter uma explicação mais ou menos lógica. Ao fundo, na rua em frente, ouviam-se vozes e cantares característicos da ocasião.
- Vem aí o primeiro carro! - exclamou alguém ao seu lado.
(Qualquer coisa aqui está muito errada... Este silêncio... é estranho!)
O que vinha a descer a rua não era um carro alegórico. Nem sequer era um carro. Era uma plataforma. Uma simples plataforma construída com bocados de madeira velha, carregada por dez ou vinte pessoas enquanto um outro alguém sentado nessa estrutura bizarra fazia brindes com a atmosfera.
Esta imagem era inexplicável e deixou-a estática. Não estava à espera de algo assim. À sua volta havia explosões de espanto e raiva.
(Será que finalmente isto começa a fazer sentido?)
Tudo o que vivia era absolutamente assustador mas para os seus vizinhos na assistência o problema era outro.
- Mas afinal que curso é este?
- Não é curso nenhum...! Não havia pessoas suficientes... Estes são os estudantes que existem actualmente...
- Então e as flores no carro?
- Não havia dinheiro. Houve desfalques por parte da reitoria. A universidade está falida.
- O quê?
O públixo insurigia-se violentamente perante esta informação aparentemente desconhecida até então. Ela encolheu-se mais contra a montra da farmácia e desejou sair dali. Gerava-se à sua volta um ambiente tenso em que olhares e gestos ameaçadores se multiplicavam e espalhavam rapidamente. Isto não ia acabar nada bem...
(Tenho de sair daqui!)
Deu um salto na cama. As persianas abanavam ruidosamente com o vento forte que soprava lá fora. Viu as horas. 5.58 am. Ainda podia dormir mais um grande bocado. Que sonho estúpido...!
(Tu-ru-ru-ru-ru-ru-ruuu...)

domingo, 15 de março de 2009

Quando a cabeça não tem juízo...

Era uma bela colina. Um daqueles pormenores numa paisagem que ninguém pode ignorar. "Verdejante", diriam os autores de escrituras complexas e demasiado intelectuais que estripariam o sentido de uma boa paisagem (algo para se ver, não para se ler). Mas sigamos ao que nos traz aqui: conhecem aquela estúpida expressão de que "vão rolar cabeças"? Uma expressão um pouco patética diria eu... Ainda assim, e ironicamente estava mesmo uma cabeça a rolar colina abaixo. Era uma cabeça de alguém, isso era certo e seguia entretida numa corrida colina abaixo. Quem olhasse para a cabeça não diria que estava divertida, talvez pelo esgar de dor do anterior dono eternamente capturado num amontoado de músculos e ossos ou talvez porque (diriam os mesmos autores) uma cabeça por si só não tem com que se divertir. Finalmente livre dos tendões que a prendiam ao corpo idiótico de um humano apático e algo anafado, estava feliz (na medida em que uma cabeça é capaz de estar feliz quando separada do corpo, o que vendo bem, ainda é alguma coisa.)

As crianças no parque infantil olhavam divertidas para aquilo que parecia uma bola disforme a saltitar campo fora, colina abaixo. Os adultos que olhavam pelas crianças discutiam a irresponsabilidade de se deixar uma bola rolar e saltitar colina abaixo. Imaginemos por momentos o que pensariam se soubessem que era uma cabeça...

À medida que ia ganhando velocidade, a cabeça pensava na antiga vida que tinha tido. Não tinha sido nada de especial, uma vida normal (pelo menos até ter sido degolada) mas agora era uma cabeça livre, uma coisa rara nos dias de hoje, essa coisa de se ser livre... A colina parecia estar a terminar. Um ressalto depois estava agora no meio de uma auto-estrada, a saltitar entre bermas. Segundos depois lá parou. Mesmo no meio de uma faixa.

O camionista ia despreocupado. A carga estava bem posta e estava a conseguir cumprir o horário.

A cabeça viu o monstro metálico aproximar-se
O camionista viu o objecto estranho no meio da estrada.
A cabeça pensou "FOOOOGE!" mas as pernas não se mexeram.
O camionista analisou melhor o que lhe parecia seu um obeso animal
"Merda, as pernas ficaram com o corpo."
"Espera lá! Aquilo é uma cabeça!"

SPLHERGHSH

Se calhar ser uma cabeça sem corpo não é assim tão bom...

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

A Peste

Era uma vez um rei, uma rainha, uma princesa, um príncipe, uns coelhos, uns cavalos e esses bichos que normalmente aparecem nos contos de fadas. Um dia morreram todos mas deixaram uma história escrita:

O mundo é mau, feio, cheio de cheiros estranhos e gente ainda pior... Mas há sempre uma pessoa que faz esquecer tudo isto e passar a ver tudo com olhos diferente, mais smpáticos e alegres! Pois bem, o meu mundo tinha 3 pessoas e meia dessas, então em vez de ver tudo mais-que-bonito, ora via tudo colorido ora via tudo cinzento... É o preço a pagar, dizia uma vozinha interior que matei mais no fim da história. Bem, deixa-me explicar isso das 3 + 1/2 pessoas: havia a do sentimento puro, que já tinha sido o suficiente mas que depressa deixou de o ser (mas sem me conseguir desfazer dele...); a outra pessoa era do puro desejo, aquela coisa física que...coise, que me transformava noutra quando estávamos sozinhos; depois havia a que juntava estas duas anteriores mas que não me fazia esquecer nenhuma delas. Ah, falta a meia, né? Essa foi um deslize, uma fraqueza quando as 3 outras pareciam estar a fugir, seria irrelevante se tivesse ficado no seu cantinho sem me chatear...
Como já deu para perceber, eu estava a desafiar os Contos de Fadas e o escritor, que era muito conservador, não estava a achar piada nenhuma. Fez de tudo para a história voltar aos eixos: tentou que engravidasse mas esqueceu-se que eu estava a tomar a pílula, mandou as 1 das pessoas para o outro canto do Reino mas eu aprendi a andar de cavalo, fez com que os meus pais apadrinhassem (o adoptar da época) outra das 3 mas nós sabemos ser bem discretos, arranjou vários papéis para a outra mas nós conseguimos arranjar um tempinho... Ele estava absolutamente pasmado! Como é possível alguém ter tantas vidas secretas?, pensava ele todas as noites... Até que se lembrou de pôr a 1/2 na história! Sinceramente, estou envergonhada de admitir que ele quase ganhou com esta!! Mas apesar de eu não saber ao certo se mais alguém ficou a saber, acho que lidei bem com a situação... Enfim, eu até estava a gostar deste jogo perigoso, esta adrenalina fazia-me sentir tão viva!, mas o escritor abominava tudo isto e não queria dar o braço a torcer. Estava disposto a deixar-me infeliz só para o seu Conto ser tradicional e cheio de "valores"... Quando viu que eu não iria permitir tal coisa tomou a decisao mais importante de todas: criou a Peste. Matou o Reino todo mas ainda está convicto de que antes mortos que imorais.

Agradeço a atenção.
Se encontrarem este escritor dêem-lhe, por favor, o maior encherto de porrada que conseguirem.

Atenciosamente,
A princesa.

O caçador

(para ler ao som disto)

A faca retinia no osso como um badalo de um sino. Movimentos artísticos manchavam, marcavam e sujavam. Corte a corte a vítima esvaía-se. Uma dança descompassada de braços e mãos trouxera o horror a um pobre corpo onde antes existia uma Vida. Não tinha sido um morte violenta. Não tinha sido sequer excitante. Apenas uma saciação funesta de um desejo. Não era sexo, não era droga, era melhor. Era o calor, o cheiro, o sabor férreo do sangue. Algo que não conseguia descrever. Um impulso, uma obsessão. Mas ainda assim, o que o mais excitava não era o sangue, não era matar, não era o doce som do gorgolejar do sangue a acumular-se onde antes estava uma traqueia. Era a caça. A procura incessante de um alvo frágil, de um esboçar de um movimento de fraqueza e permissão.

Na rua as horas passavam como se o tempo se apressasse para chegar a algum lugar...

Retalhara o corpo até se desfazer numa papa escarlate e branca. Desfizera-se no seu próprio prazer. Descansava agora prazenteiramente sob as cobertas de lã. Quem para si olhasse diria tratar-se de um anjo, de louros caracóis e de pálida tez. De traços simples e atractivos era o deleite de olhares menos prudentes. O único defeito que tinha era o interior. O pequeno demónio alojado no seu corpo. Mas nos seguintes dias poderia descansar, ele e a cidade... Mas dentro de menos uma semana estaria de volta às ruas. Um caçador, precisa afinal de caçar.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

"Avance até à casa de Partida"

Permeava-lhe os olhos uma larga camada de lágrimas, daquelas que fazem os olhos vermelhos, inchados e que cansam as pálpebras. O seu esforço para não chorar era quase hercúleo. Não queria desfazer-se em mil pedaços cristalinos em frente deles. Não o mereciam.
Já há muito que não tinha uma tão súbita vontade de chorar assim. Lembrava-se da primeira vez, de quando o seu pequeno peixe dourado havia fugido cano da sanita abaixo; e da última vez, quando proferira a derradeira despedira da sua mãe. Das duas vezes fizera o mesmo que fazia agora: mostrar-se impávido e sereno como quem descasca uma cebola e não quer parecer fraco. Mas desta vez era diferente, desta vez sabia que não teria mais um momento só, que o seu desespero seria mais tarde ou mais cedo revelado. Os olhos pesavam-lhe. Da dor, do sono, do peso da vida, do medo...
Olhou em seu redor. Das outras quatro pessoas que ali estavam apenas três estavam em pé e vivas. A quarta, inerte no meio do chão, já partira há minutos. Tinha sido uma boa vida, teria boas memórias para partilhar se ao menos o pudessem chegar a ser.
Dos três que estavam de pé apenas um o mirava. De olhos vivazes e de estatura mediana, o jovem estava visivelmente assustado. Principiante.
Dos dois que não o miravam apenas um trazia a pistola de fora. Desconfiado.
O que restava remexia violentamente as caixas para encontrar o que procurava no sítio que lhe indicara. O veterano.


Um abafado "A-ha!" ecoou pela morta sala. A caixa de Monopólio foi puxada de debaixo de uma panóplia de jogos de tabuleiro e foi posta numa silenciosa mesa. A tampa foi parcimoniosamente aberta e num misto de excitação e horror o veterano esgazeado voltou-se para o homem prostrado no chão.

"Perguntaste pelo dinheiro, e eu disse que não o tinha. Tornaste a perguntar, disse-te que o dinheiro que tinha estava na caixa de Monopólio" foram as suas últimas palavras... O estampido parecia-lhe ter-se feito ouvir já à muito mas continuava a chorar. Os pequenos cristais que lhe rolavam pela face pareciam inundar-lhe os pulmões.Voltou à posição fetal e continuou a chorar durante o que lhe pareceram ser meses.

Quando voltou a abrir os olhos chorou de goelas abertas, como se disso dependesse a sua vida. Grandes e fortes mãos carregavam-no para um lugar mais terno, para o colo da sua mãe.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

A vida é uma incógnita

A paragem do autocarro habita um lugar particularmente inóspito. Localizada bem no centro de uma gigantesca avenida, quase nunca recebe a luz solar, sempre mergulhada na sombra das torres de escritórios que se apresentam à sua frente e atrás de si. Só pela uma da tarde é que aquele banco de metal, tapado por placas de metal atrás e dos lados, recebe uns restinhos de sol, que não chegam para fazer a fotossíntese a um trevozinho. E se durante o dia a paragem se revela um local sombrio e inospitaleiro, o que dizer da noite. Quase ninguém lá apanha autocarros; pelas nove da noite, que é quando este episódio se passa, já tudo está em casa, ninguém já está a trabalhar, o centro da cidade está desconfortavelmente deserto. Mas X, o nosso personagem, é excepção à regra. Guarda de um edifício de escritórios, só está autorizado a sair às oito e quarenta e cinco, quando o seu turno acaba e o de outro começa. E agora que o alarme tocou, quase que corre pelos corredores do prédio, embora mantenha a dignidade e consiga controlar todas as acções que derivam de um sentimento tão comum entre os mortais, a suadade. Portanto, vai a andar, passo largo e acelarado, para a sala de pessoal, despir a farda e vestir a roupa de todos os dias. Não há tempo para um duche, o autocarro parte às nove e sete e a paragem ainda fica longe. Ao sair do edifício, cruzou-se com o seu colega que vai agora trabalhar, cujo nome é também uma incógnita, não por capricho de um adolescente contador de histórias, mas porque não sabe mesmo o seu nome. Nunca trocaram mais que boas noites, para esse grau de intimidade não é preciso saber o nome.
Agora, fora da torre de escritórios, longe das câmaras de vigilância, X já pode correr, agora mais impelido por um infantil medo do escuro e do silêncio da cidade do que propriamente pelas saudades da esposa e do filho. Nos passeios, o rodopiar do lixo no chão contrasta com os milhões de passos que são dados durante o dia. Toda aquela selva de betão assusta-o, a altura vertiginosa dos prédios, o silêncio que perscruta as ruas vazias, o voo dos morcegos do medo e o grito dos corvos do receio.
Chegou finalmente, e ofegante, à avenida. Já avista a paragem, iluminada pela ténue luz de um candeeiro alto e velho. Olhou para o relógio, nove e dois. Ainda tem tempo, escusa de ir a correr, até porque faria uma figura ridícula em frente a um vulto que avista na paragem. Aproveitou para recuperar o fôlego e abrandar o batimento cardíaco, embora o rosado nas faces não vá desaparecer assim tão rápido. À medida que avança, o vulto torna-se mais nítido. É um homem, barba negra e cabelo desgrenhado, dedos entrelaçados entre os joelhos, cabeça encostada a uma das paredes da paragem, de olhos fechados e expressão sofredora. X sentou-se tentando fazer o mínimo barulho possível, para não acordar o homem. Em vão, bastou uma das nádegas de X repousar no metal para o estranho acordar sobressaltado. Olhou para X, esfregou a cara, abriu os braços num espriguiço e disse, com voz rouca e hálito a aguardente,
- Boa noite.
X respondeu com as mesmas palavras com uma timidez de criança assustada. Não gostava de problemas, e pessoa embriagada é quase sempre sinónimo de alguns. Pergunta-se o leitor como é que alguém tão assustadiço, tão frágil, mimado até, chegou ao posto de guarda. Bem, não só o coração tem razões que a própria razão desconhece, pelos vistos também este X tem essa característica.
- Está frio, disse o homem esfregando as mãos.
- Pois, balbuciou X.
Seguiu-se um pequeno silêncio. X olhou para o relógio: nove e seis. Esperava ansiosamente pela vinda do autocarro.
- Ouça, vou contar-lhe uma anedota.
Neste momento, X sentiu que o corpo lhe expulsara todo o líquido que tinha através dos poros. Este vulto seria, muito provavelmente, um daqueles maníacos que gosta de brincar com as vítimas antes de as decapitarem ou coisa que o valha. Ainda assim, X deixou-se ficar quieto, não respondendo. O estranho continou:
- Estão duas mulheres, tias do Jet Set, a jantar numa taberna no Entroncamento. Uma delas diz "Meu Deus, a comida daqui é horrível." e a outra responde "Sim, eu sei, e ainda por cima as doses são tão pequenas...".
O vulto riu ruidosamente, X manteve-se calado e olhou para o relógio. Nove e nove, o que se passaria com o autocarro?
- Sabe, esta piada aqui, resume mais ou menos a nossa vida. Cheia de solidão, tristeza, sofrimento e infelicidade e ainda passa demasiadamente depressa.
Os faróis do autocarro já se viam ao fundo da avenida. X, embora tivesse ouvido tudo o que o homem dissera, mantera-se imóvel. Olhou de soslaio quando ouviu alguns soluços e viu o estranho a chorar ao seu lado, como um bebé, as lágrimas a deslizarem pelo rosto imundo e indo-se depositar nos pêlos da barba. Como que atingido por um raio de piedade, X colocou a mão sobre o ombro do homem e perguntou
- O que se passa? Precisa de alguma coisa?
Já iluminados pela luz dos faróis do autocarro, o estranho voltou-se para ele e disse-lhe com uma dolorosa mágoa na voz,
- Preciso homem! Preciso de um abraço!

Apesar do atraso do autocarro, X chegou a casa à hora de sempre. Entrou na sua sala como se fosse um general vencido, cabisbaixo e pálido. A mulher foi ter com ele, dar-lhe as boas vindas a casa. Ele respondeu-lhe com um olhar vazio e um beijo no rosto.
- Vou-me lavar, disse.
O que se passou no interregno da viagem de autocarro, fica o leitor com o poder de o imaginar. Certo é que X, depois de despir, de caminhar para o poliban e de se pôr debaixo de água se deixou lá ficar por quase uma hora. E um pouco de água salgada misturou-se com a água doce que caía do chuveiro.

(livremente inspirado em Annie Hall, uma crónica que li algures e na vida de todos e de cada um)

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Silêncio

... e agora as tequillas davam um ar da sua graça acentuando a sensação de desequilíbrio que era já tão evidente. Não sentia frio nem cansaço e apesar da energia, sentia-se a mover em câmara lenta, personagem principal num filme mal focado e mal iluminado. Fez mais uma pausa e olhou para ele, mais acima na rua íngreme. Ele subiu ainda mais uns passos, até que percebeu que ela parara, outra vez, no meio da estrada. Parou também e observou-a, estático. Ela tentou perceber em que é que ele pensava mas não conseguiu adivinhar o que lhe passava pela cabeça. Não viu um sorriso nem um ar de reprovação. A sua expressão era neutra, o seu olhar demasiado enigmático.
Nesse instante os faróis de um carro a aproximar-se iluminaram as fachadas dos prédios perto de si e ele subiu para o passeio. Ela não se mexeu. Não conseguia perceber de que lado o carro vinha e estava a tentar decidir para que lado se desviar. Sentiu o motor a aproximar-se e começou a transpirar. O seu instinto de perigo bloqueou o raciocínio e a sua cabeça inundou-se com um flash.
Ele correu para ela, puxou-a por um braço e encostou-a a um dos muitos carros estacionados naquela rua. Nunca lhe largou o braço e deixou-se estar encostado a ela. Foram apenas segundos.
Sem uma única palavra, ainda em silêncio, ele largou-a e afastou-se, recomeçando o andar.
Ela não deixou. Instintivamente, agarrou-o por um braço, da mesma forma que ele a tinha agarrado a ela.
Fixaram-se. Olhos nos olhos. E no silêncio da madrugada fria, aquele olhar que dizia tudo era tão dolorosamente vago. No seu íntimo os dois desesperavam em busca das palavras certas, mas sem sucesso. Desconheciam que naquele momento não existia uma única palavra que fosse a correcta. O silêncio preenchia todos os espaços vazios. O brilho dos seus olhos era suficiente. Tudo o resto era supérfluo. Cada um dentro de si, ainda lutando contra a verdade, procurava uma resposta, uma atitude a tomar. Lutavam por uma qualquer ideia sobre o que fazer a seguir, algo que conseguisse preencher o silêncio sem o estragar. Nenhum se atreveu a abrir a boca. Nenhum deles mexeu um músculo. Deixaram-se estar. Lutando contra si próprios, sozinhos no mundo. Ambos se esforçavam por dizer tudo o que sentiam e em que pensavam através do olhar que os prendia ali.
Uma luz etérea voltou a iluminar a fachada dos prédios. A noite quebrou-se em pedaços de cristal negro. A ligação desfez-se. O momento morreu.
Olharam o chão e prosseguiram o seu caminho, com o silêncio ainda a preencher todo o espaço entre eles.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Cosy

Olhava para a borboleta e admirava os seus movimentos suaves e leves, provocados pelas ondas de calor que subiam até ao tecto. Deitada na cama, de olhos vidrados, tentava focar a mancha desfocada de tom laranja que oscilava calmamente. Nenhum pensamento na sua mente, nenhum músculo mexia. Vagueava no limiar dos sentidos, ausente do corpo jovem que a ancorava a este mundo. Não tinha memórias nem desejos para um futuro próximo ou não. Neste momento não tinha vontade, não tinha espírito, não tinha alma. Nem sequer estava em transe. Não era uma pessoa, na verdadeira acepção da palavra. Neste momento era o corpo inerte deitado na cama. Se respirava não tinha consciência de o estar a fazer.

A borboleta ficava cada vez mais desfocada.

Lá fora, depois daquelas paredes, para lá da porta, havia vida, movimento, confusão, barulho, vontade. Para lá daquela porta que a separava da realidade uma míriade de objectos e cores e sons e cheiros e pessoas era misturado num cocktail de vida e preocupação. Para lá daquela porta corações batiam descompassados, agitados. Amigos e desconhecidos uniam-se num único objectivo. Mas para isso tinham de passar aquela barreira.
Batiam à porta em desespero, gritavam e calavam-se, esperando uma resposta.

Um vulto aproxima-se da cama. Fala com ela, faz-lhe perguntas.
- A casa está a arder! - ouve uma voz gritar lá fora - Alguém pegou fogo à casa!
"Eu sei...", pensou. "Fui eu".
Continuou em silêncio, a olhar a borboleta, a mancha laranja, cada vez mais envolta em fumo negro.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

A escrivaninha

"Quando era mais criança, o teu pai sentava-se àquela escrivaninha a ler grandes livros de coisas que eu nunca percebi bem o que eram..." dizia uma avó embevecida a um irrequieto e pequeno neto. Contava-lhe os tempos que o jovem não tinha vivido, tempos de ouro esbatido com o tempo mas que retinham o seu valor. O petiz ouvia embalado na cândida voz da sabedoria. Ouvia histórias e estórias sobre a vida de outrora, sobre a geração anterior à dele e da geração anterior a essa e com todas o pequeno rapaz aprendia. Dentro dele pequenas sementes eram plantadas e regadas para um dia germinarem. E horas depois, depois da história do seu nascimento, o pequeno garoto levantou-se do colo da imóvel avó e dirigiu-se a casa, duas portas acima passo a passo. Bateu à porta e atendeu-lhe a mãe exclamando, num tom demasiado alegre e estridente, um "Tão cedo? Já te fartaste das histórias da avó?". A única coisa que o rapaz respondeu foi um penoso mas duro "Mãe, a Avó morreu."

O petiz cresceu um pouco com os anos, aquele efeito secundário de que ninguém quer padecer, e foi visitar a campa da avó. Haviam passado exactamente dez anos. Todos os anos ali passava naquela data, todo os anos lhe relatava o que tinha aprendido, o que tinha crescido.
"A escrivaninha mantém-se no mesmo sítio. Passei lá ontem a noite, entre os livros do Pai e o café que me ensinaste a fazer", contava-lhe o neto. Nunca tinha chorado a morte da Avó, nem a morte do Pai antes dessa. Da morte do Avô não se lembrava, tinha acontecido antes mesmo de ele ter sido devidamente planeado. Uma morte brutal numa qualquer Guerra ceifeira de vidas. A única coisa que tinha dele era o olhar, dissera-lhe uma vez a Avó. Um olhar partilhado também pelo Pai.
As histórias do ano que tinham passado eram contadas em fiada, umas a seguir às outras. quando terminou, depositou o pequeno ramo de violetas sobre a campa e virou-lhe costas por um ano. Ao chegar a casa, pôs a cafeteira ao lume e pôs-se em frente à grande pilha de livros e folhas que ocultavam a velha escrivaninha...

Anos e anos se passaram. Nascimentos, mortes, tragédias, alegrias... O leve passar dos anos como vem sendo habitual...

"Quando era mais criança, o teu pai sentava-se àquela escrivaninha a desenhar enquanto eu lhe lia os velhos livros do meu Pai" dizia um avô saudoso a uma calma e atenta neta ao seu colo... E uma vez mais as sementes eram lançadas em novas e férteis terras enquanto as velhas plantas murchavam pela última vez...

[Z]

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

A História da Batata Honrada

Era uma vez uma batata. Esta batata chamava-se... Esperem. Não posso dizer o nome dela. E não vou inventar um nome e atribuir-lho. Ela não ia gostar. É uma batata, é suficiente para a sua identificação. Ora então recomecemos.
Era uma vez uma batata. Quando as pessoas começam a contar a sua história e ela anda por perto enfurece-se rapidamente. Isto porque não há ninguém que não pergunte: "Então mas era uma batata quê? Cozida, frita, de pacote...?". De pacote... Que bela forma de insulto. Era lá agora de pacote! 100% natural, ora bolas! Não era como as outras batatas que andam por aí hoje em dia e... Bem, calma. Já lá vamos.
Esta batata não suporta que lhe perguntem que tipo de batata é. É uma batata, poças! Que mania de a quererem arrumar num qualquer estereótipo ingrato. Era o que era, tinham que a aceitar como tal.
Para batata tinha um feitio muito complicado. Desde muito nova que possuía ideias muito próprias e os seus pais não a percebiam. À medida que foi crescendo e conhecendo outras batatas o seu sentido crítico acentuou-se. Tinha conhecido cada uma... No fundo eram todas iguais. Existiam aquelas com origens humildes cuja maior ambição era acabar onduladas dentro de um pacote colorido, outras preferiam ser lisas e não ter sal (alguém lhes terá dito que engorda). Existiam muitas outras com ambições semelhantes. O pior para uma batata era acabar congelada num saco com um M por fora. Era sinónimo de uma vida muito triste. Passavam anos congeladas e de repente, a única vez que sentiam um pouco de liberdade, era enquanto eram fritas num óleo sujo por onde já tinham passado tantas outras, salgadas à bruta, segundos antes de serem comidas por amontoados de colesterol em forma de seres humanos.
Ora a nossa batata achava isso ridículo. Porque é que alguém haveria de chegar a esse ponto? Porque é que todas as batatas suas conhecidas, sem excepção, ansiavam por ser comidas por qualquer pessoa? Era estúpido! Por isso esta batata não queria ser como as outras que se deixam comer por qualquer um! Esta batata tinha ideias e princípios. Esta batata tinha valor e não ia deixar que lhe sugassem o amido assim por dá cá aquela palha!
Até que um dia... Um certo agricultor lhe deitou a mão. Lavem lá essas mentes com sabão azul, não foi nada disso que estão a pensar! O jovem agricultor tinha as mãos macias e as unhas pequenas, tinha meiguice nos gestos e a sua pele tinha um aroma fresco e acolhedor, eram as melhores mãos que já tinha visto! Não era uma batata com muita experiência, mas pelas histórias que ouvia pensava que os agricultores eram todos rudes, brutos, lambões e com mãos grossas e ásperas… Aquele tinha as mãos que lhe aqueciam os sonhos nas noites frias da rega dos terrenos, era aquilo que ela queria! Começou a imaginar como seriam os seus lábios, a sua língua, os seus dentes… Será que a primeira vez que for trincada vai doer muito? Secalhar a língua macia atenua um bocado a dor… Sem falar da saliva, dizem que torna as coisas mais… Naquele momento soube logo: quero que ele me coma!
O pequeno agricultor pegou nela com muito cuidado e correu felicíssimo a gritar: "mããe, mããe! Botei as mãos à terra e achei uma batata! É redondinha! Bou já botá-la no meu quarto." Bem, a batata estranhou tamanha alegria em contar à mãe, mas depois lá percebeu que ele também tinha tido sonhos em noites frias (será que também lhe regavam a cama?). Na manhã seguinte, a batata acorda bem cedo e repara que o agricultor ainda está a dormir. "Ontem parecia maior…" – pensou ela. "Mas estes humanos são estranhos, secalhar em vez de crescerem, diminuem! É melhor que ele me coma rápido antes que desapareça!" Lá esticou as peles para ficar bem bonita e roçou-se no naperon onde o agricultor a tinha pousado para ficar brilhante, como as maçãs fazem. O agricultor acordou, pô-la na mochila e saiu de casa, "xau mããe! 'Té logo, bãnho co Bítor!" A batata achou isso estranho mas pensou que ele até podia ser um estudante de culinária e que a ia regar com os melhores molhos de especiarias. Sentiu-se tão especial que quase lhe nasceu um grelo de felicidade!
Quando chegou estava tanto barulho! Começou a ficar nervosa quando viu que em vez de panelas e frascos de especiarias havia bonecos e boiões de tintas: aquilo era um jardim de infância! "O que vão fazer comigo aqui?" – estava a entrar em pânico! Até que quando a professora diz para cortarem as batatas ao meio e fazerem delas carimbos, a pobre batata desmaiou e ficou logo mais mole…
O agricultor a quem ela se decidiu entregar depois de tanto tempo isolada debaixo da terra era na verdade um rapazinho que só queria brincar com ela para depois a deitar no lixo para apodrecer junto das abóboras. Ela escolheu-o pelas suas mãos macias e inocentes, não dando ouvidos às suas amigas quando estas lhe diziam que mãos rudes não indicam bocas brutas! Simplesmente têm mais experiência e sabem como te arrancar da terra, como te descascar e como te cozinhar de maneira a ficares ainda mais apetitosa…

Moral da história: Batata honrada devia ter ouvidos em vez de grelos.

Parceria entre R?+@ e xumé

O colectivo

Ouçam-me pobres jovens iletrados, o fim está próximo! O fim da monotonia, claro está. Chegaram de longe e demoraram. Um grupo heterogéneo de jovens que aqui está para mudar a vida de muitos ou de muito poucos. Uma trupe de aprendizes de escritor que vos veio então chatear.

Apresentando o Colectivo:
Pedro - A chuva molhada
Salomé - Mind, Body and Soul
Rita - Girls of Power & "Para estranho basta o mundo real"
Leonor - Girls of Power
- Apetece-me morrer

Acompanhem-nos então na saga pelos Mundos mentais de cada um destes jovens meios tresloucados com muito ou muito pouco para vos dar ou ensinar.

Sem delongas,
O idealista.