domingo, 1 de fevereiro de 2009

A escrivaninha

"Quando era mais criança, o teu pai sentava-se àquela escrivaninha a ler grandes livros de coisas que eu nunca percebi bem o que eram..." dizia uma avó embevecida a um irrequieto e pequeno neto. Contava-lhe os tempos que o jovem não tinha vivido, tempos de ouro esbatido com o tempo mas que retinham o seu valor. O petiz ouvia embalado na cândida voz da sabedoria. Ouvia histórias e estórias sobre a vida de outrora, sobre a geração anterior à dele e da geração anterior a essa e com todas o pequeno rapaz aprendia. Dentro dele pequenas sementes eram plantadas e regadas para um dia germinarem. E horas depois, depois da história do seu nascimento, o pequeno garoto levantou-se do colo da imóvel avó e dirigiu-se a casa, duas portas acima passo a passo. Bateu à porta e atendeu-lhe a mãe exclamando, num tom demasiado alegre e estridente, um "Tão cedo? Já te fartaste das histórias da avó?". A única coisa que o rapaz respondeu foi um penoso mas duro "Mãe, a Avó morreu."

O petiz cresceu um pouco com os anos, aquele efeito secundário de que ninguém quer padecer, e foi visitar a campa da avó. Haviam passado exactamente dez anos. Todos os anos ali passava naquela data, todo os anos lhe relatava o que tinha aprendido, o que tinha crescido.
"A escrivaninha mantém-se no mesmo sítio. Passei lá ontem a noite, entre os livros do Pai e o café que me ensinaste a fazer", contava-lhe o neto. Nunca tinha chorado a morte da Avó, nem a morte do Pai antes dessa. Da morte do Avô não se lembrava, tinha acontecido antes mesmo de ele ter sido devidamente planeado. Uma morte brutal numa qualquer Guerra ceifeira de vidas. A única coisa que tinha dele era o olhar, dissera-lhe uma vez a Avó. Um olhar partilhado também pelo Pai.
As histórias do ano que tinham passado eram contadas em fiada, umas a seguir às outras. quando terminou, depositou o pequeno ramo de violetas sobre a campa e virou-lhe costas por um ano. Ao chegar a casa, pôs a cafeteira ao lume e pôs-se em frente à grande pilha de livros e folhas que ocultavam a velha escrivaninha...

Anos e anos se passaram. Nascimentos, mortes, tragédias, alegrias... O leve passar dos anos como vem sendo habitual...

"Quando era mais criança, o teu pai sentava-se àquela escrivaninha a desenhar enquanto eu lhe lia os velhos livros do meu Pai" dizia um avô saudoso a uma calma e atenta neta ao seu colo... E uma vez mais as sementes eram lançadas em novas e férteis terras enquanto as velhas plantas murchavam pela última vez...

[Z]

2 comentários:

Anônimo disse...

Simples, puro e bonito retrato da simplicidade, pureza e beleza da vida :)

Laura.

Rita Graça disse...

Gostei.

Quando li "Mãe, a Avó morreu" pensei - yeeei, aí vem mais um texto mega depressivo e perturbador. Mas olha, não. Está mesmo muito querido e sinto que vou conseguir dormir depois do ler. Atrevo-me até a dizer que aquece o coração.

(Vês? Tão querida que estou hoje?)