quinta-feira, 23 de abril de 2009

amo-te porra

Foi numa manhã negra e sonolenta que vi pela primeira vez aquela frase, escrita porcamente a spray azul num bloco de betão ríspido e frio. "amo-te porra", escrita assim, sem maísculas nem pontuação, foi ali pntada durante a noite, por alguma alma apaixonada que quis mostrar os seus sentimentos mais profundos não só à alma amada como também ao pequeno universo de pessoas que passam pela rotunda onde o bloco de betão está instalado.
Alvo de comentários trocistas durante os primeiros dias de exposição, a frase rapidamente se tornou banal, até fazer parte natural da paisagem fria e grosseira das obras de alargamento de uma estrada, em que ninguém parecia mais reparar. Quando finalmente a estrada passou a ter duas grandiosas faixas de cada lado, o bloco de betão desapareceu sorrateiramente, não deixando saudade aos automobilistas, sedentos de velocidade e ultrapassagens.
Não são poucas as declarações públicas escritas no alcatrão da estrada, numa placa de direcção, numa parede, num sinal de trânsito. No entanto, este "amo-te porra" toma um significado especial na sua categoria. Não é pela maneira como foi escrito, felizmente este obedeceu aos cânones oficiais: escrito com spray de pouca qualidade, letra minúscula, mas à máquina, com o mesmo requinte que um "o governo é merda!" ou um "SLB filhos da puta", esta frase apenas difere no seu conteúdo. O normal é haver um nome associado ao verbo amar ou ao seu equivalente na língua inglesa, não uma grotesca expressão de aborrecimento e indignação como é a palavra "porra". Mas é neste ponto que o autor da frase inova: ao não nomear ninguém, não corre o risco de ser humilhado no caso daquele amor terminar, como acontece tão frequentemente na vida. "amo-te porra" é intemporal e impessoal: o ser humano irá sempre amar, quer seja a Maria, a Inês, a Joana, o Manel, o Carlos ou o Francisco. O indivíduo que ali escreveu aquelas singelas palavras não terá provavelmente a noção da sua importância: serviram de riso àqueles que, desde sempre amados, troçam da patetice deste tipo de romantismos; serviram de preocupação àqueles que tomam qualquer inscrição num espaço público como um acto cataclísmico de vandalismo; serviram de consolo aos altruístas que se sentiram felizes por saber que há lá fora gente feliz, que ama; serviram de desgosto aos infelizes, sendo aquelas letras uma provocação à sua solene tristeza.
E pouco mais há a dizer sobre isto, o mais provável é que continuem a surgir risos aquando da memória das palavras escritas naquele local. Mas eu vos digo, aqui sentado numa cadeira de escritório, virado para este crepúsculo nojento, vestido com um robe velho que me pica a pele, que furava os olhos e rasgava a boca por umas palavras semelhantes.

2 comentários:

Brid disse...

Adorei completamente ^^

UmJosé disse...

não me aquece nem me arrefece... já estiveste melhor.