sábado, 14 de fevereiro de 2009

A vida é uma incógnita

A paragem do autocarro habita um lugar particularmente inóspito. Localizada bem no centro de uma gigantesca avenida, quase nunca recebe a luz solar, sempre mergulhada na sombra das torres de escritórios que se apresentam à sua frente e atrás de si. Só pela uma da tarde é que aquele banco de metal, tapado por placas de metal atrás e dos lados, recebe uns restinhos de sol, que não chegam para fazer a fotossíntese a um trevozinho. E se durante o dia a paragem se revela um local sombrio e inospitaleiro, o que dizer da noite. Quase ninguém lá apanha autocarros; pelas nove da noite, que é quando este episódio se passa, já tudo está em casa, ninguém já está a trabalhar, o centro da cidade está desconfortavelmente deserto. Mas X, o nosso personagem, é excepção à regra. Guarda de um edifício de escritórios, só está autorizado a sair às oito e quarenta e cinco, quando o seu turno acaba e o de outro começa. E agora que o alarme tocou, quase que corre pelos corredores do prédio, embora mantenha a dignidade e consiga controlar todas as acções que derivam de um sentimento tão comum entre os mortais, a suadade. Portanto, vai a andar, passo largo e acelarado, para a sala de pessoal, despir a farda e vestir a roupa de todos os dias. Não há tempo para um duche, o autocarro parte às nove e sete e a paragem ainda fica longe. Ao sair do edifício, cruzou-se com o seu colega que vai agora trabalhar, cujo nome é também uma incógnita, não por capricho de um adolescente contador de histórias, mas porque não sabe mesmo o seu nome. Nunca trocaram mais que boas noites, para esse grau de intimidade não é preciso saber o nome.
Agora, fora da torre de escritórios, longe das câmaras de vigilância, X já pode correr, agora mais impelido por um infantil medo do escuro e do silêncio da cidade do que propriamente pelas saudades da esposa e do filho. Nos passeios, o rodopiar do lixo no chão contrasta com os milhões de passos que são dados durante o dia. Toda aquela selva de betão assusta-o, a altura vertiginosa dos prédios, o silêncio que perscruta as ruas vazias, o voo dos morcegos do medo e o grito dos corvos do receio.
Chegou finalmente, e ofegante, à avenida. Já avista a paragem, iluminada pela ténue luz de um candeeiro alto e velho. Olhou para o relógio, nove e dois. Ainda tem tempo, escusa de ir a correr, até porque faria uma figura ridícula em frente a um vulto que avista na paragem. Aproveitou para recuperar o fôlego e abrandar o batimento cardíaco, embora o rosado nas faces não vá desaparecer assim tão rápido. À medida que avança, o vulto torna-se mais nítido. É um homem, barba negra e cabelo desgrenhado, dedos entrelaçados entre os joelhos, cabeça encostada a uma das paredes da paragem, de olhos fechados e expressão sofredora. X sentou-se tentando fazer o mínimo barulho possível, para não acordar o homem. Em vão, bastou uma das nádegas de X repousar no metal para o estranho acordar sobressaltado. Olhou para X, esfregou a cara, abriu os braços num espriguiço e disse, com voz rouca e hálito a aguardente,
- Boa noite.
X respondeu com as mesmas palavras com uma timidez de criança assustada. Não gostava de problemas, e pessoa embriagada é quase sempre sinónimo de alguns. Pergunta-se o leitor como é que alguém tão assustadiço, tão frágil, mimado até, chegou ao posto de guarda. Bem, não só o coração tem razões que a própria razão desconhece, pelos vistos também este X tem essa característica.
- Está frio, disse o homem esfregando as mãos.
- Pois, balbuciou X.
Seguiu-se um pequeno silêncio. X olhou para o relógio: nove e seis. Esperava ansiosamente pela vinda do autocarro.
- Ouça, vou contar-lhe uma anedota.
Neste momento, X sentiu que o corpo lhe expulsara todo o líquido que tinha através dos poros. Este vulto seria, muito provavelmente, um daqueles maníacos que gosta de brincar com as vítimas antes de as decapitarem ou coisa que o valha. Ainda assim, X deixou-se ficar quieto, não respondendo. O estranho continou:
- Estão duas mulheres, tias do Jet Set, a jantar numa taberna no Entroncamento. Uma delas diz "Meu Deus, a comida daqui é horrível." e a outra responde "Sim, eu sei, e ainda por cima as doses são tão pequenas...".
O vulto riu ruidosamente, X manteve-se calado e olhou para o relógio. Nove e nove, o que se passaria com o autocarro?
- Sabe, esta piada aqui, resume mais ou menos a nossa vida. Cheia de solidão, tristeza, sofrimento e infelicidade e ainda passa demasiadamente depressa.
Os faróis do autocarro já se viam ao fundo da avenida. X, embora tivesse ouvido tudo o que o homem dissera, mantera-se imóvel. Olhou de soslaio quando ouviu alguns soluços e viu o estranho a chorar ao seu lado, como um bebé, as lágrimas a deslizarem pelo rosto imundo e indo-se depositar nos pêlos da barba. Como que atingido por um raio de piedade, X colocou a mão sobre o ombro do homem e perguntou
- O que se passa? Precisa de alguma coisa?
Já iluminados pela luz dos faróis do autocarro, o estranho voltou-se para ele e disse-lhe com uma dolorosa mágoa na voz,
- Preciso homem! Preciso de um abraço!

Apesar do atraso do autocarro, X chegou a casa à hora de sempre. Entrou na sua sala como se fosse um general vencido, cabisbaixo e pálido. A mulher foi ter com ele, dar-lhe as boas vindas a casa. Ele respondeu-lhe com um olhar vazio e um beijo no rosto.
- Vou-me lavar, disse.
O que se passou no interregno da viagem de autocarro, fica o leitor com o poder de o imaginar. Certo é que X, depois de despir, de caminhar para o poliban e de se pôr debaixo de água se deixou lá ficar por quase uma hora. E um pouco de água salgada misturou-se com a água doce que caía do chuveiro.

(livremente inspirado em Annie Hall, uma crónica que li algures e na vida de todos e de cada um)

4 comentários:

UmJosé disse...

"Este vulto seria, muito provavelmente, um daqueles maníacos que gosta de brincar com as vítimas antes de as decapitarem ou coisa que o valha."

Diria eu que este senhor X passa demasiadas hora em frente a um pequeno ecrã a ver daqueles programas impróprias para trabalhadores na área da segurança... daquelas séries que passam após a hora de deitar das donas de casa mas antes das horas dos programas dos funcionários nocturnos...

;)

Anônimo disse...

Que raio de mania, essa de deixar as pessoas na dúvida, a imaginar.

Leonor e Rita disse...

wow...
Gostei, muito sinceramente!

A ideia da anedota e o paralelismo com a vida... brutal, mesmo!
continua!

Leonor**

Rita Graça disse...

Gostei da imagem descrita. Very nice. :)