domingo, 26 de abril de 2009

O labirinto de Ariadne.

Ariadne olhava-se ao espelho e rodava a saia do vestido de preguinhas rendadas. Era uma menina crescida, agora, e como tal tinha obrigações a que não podia escapar, o que era possível perceber pela expressão apática da sua cara. Era uma espécie de sofrimento ter de acordar cedo para fazer algo para que não se sentia motivada. Só o olhar suplicante da mãe a levava a sair de casa. Olhou pela janela do quarto, para o extenso jardim verdejante lá fora. Suspirou, ajeitou o laço no cabelo e saiu de casa. Ter dez anos não era nada fácil...
A viagem de carro era extremamente desconfortável e entreteve-se a pensar como seria o mundo quando tivesse vinte anos. Dez anos era muito tempo... O futuro tinha de ser diferente! Se calhar já nem iriam existir carros...! Mas se existissem carros em 1941 de certeza que seriam infinitamente mais confortáveis. Nem sequer dava para apreciar a paisagem com tanto solavanco e estava a ficar terrivelmente enjoada... A única coisa que conseguia perceber das imagens tremidas que recebia através da janela era que estava uma linda manhã de Primavera o que só veio acentuar o desgosto por ter que ir à missa.
Não percebia nada de latim, não achava piada nenhuma a ter que repetir uma ladainha infinita numa língua que não entendia e todo aquele ambiente era depressivo. Ninguém sorria, tinha de estar sempre calada e não podia brincar com os outros meninos. Queria ir brincar para a rua, apanhar ar, gritar, cantar. Ali as músicas e o silêncio eram igualmente pesados.
Quando era mais pequenina pensava que as pessoas estavam tristes pelo senhor pregado na cruz. Não percebia porque é que as pessoas olhavam para o chão em vez de olhar para ele. Seria para fingir que ele não estava lá, a sofrer? Ou para não terem de o ajudar? Se calhar era difícil tirar aqueles pregos. Se calhar também não se queriam sujar no sangue. Às vezes tinha vontade de ir lá acima falar com o senhor da cruz, perguntar se estava bem e tentar ajudá-lo mas tinha medo porque havia o senhor mau que falava uma língua que não entendia (o padre, veio a avó a ensinar-lhe mais tarde) e além disso a mãe batia-lhe se ela sujasse o vestido de domingo.
Depois de ter percebido que era uma imagem esculpida em pedra e não uma pessoa a sério começou a indagar a causa para tamanho castigo. Se calhar tinha percebido mal, se calhar ele é que era o homem mau. Se calhar era um ladrão ou um assassino e o padre estava à frente dele a falar latim para nos alertar para os perigos de existirem pessoas más que nos podem fazer muito mal. Nunca tinha ouvido falar de um castigo assim.
Estes pensamentos de criança tinham sido a sua crença há dois anos atrás. Mas a avó explicara-lhe o que se passava: nós é que éramos as pessoas mal comportadas e senhor da cruz chamava-se Jesus e tinha vivido há muitos anos. Até hoje nunca existiu ninguém como ele. Era o bem mas não era um anjo. Era uma pessoa como nós mas conseguia fazer coisas que nós não conseguíamos. A avó chamou-lhes milagres e contou-lhe alguns. Ela ainda não percebia muito bem como é que os milagres funcionavam mas tinha quase a certeza que era uma espécie de magia misturada com curas dos médicos porque ele conseguia por os cegos a ver.
A avó também lhe explicou que Jesus estava na cruz porque era tão bom que se sacrificou por nós, para nos salvar, porque nós é que devíamos ser castigados. Ela não percebia isto muito bem. Na escola, quem fazia alguma coisa mal levava reguadas nas mãos. Não havia um menino que fosse castigado por todos eles. Nem fazia muito sentido...
Apesar de tudo o que a avó já lhe tinha explicado ainda havia muitas coisas que não percebia. Por exemplo, as pessoas falavam muito de Deus. Deus não era uma pessoa. Era Deus. A avó disse-lhe que era como o ar: estava por todo o lado mas não o conseguíamos ver. E Deus era também o próprio ar. Ela não percebeu, então a avó explicou-lhe que Deus era pai de Jesus mas que não era um pai como os outros, o que a deixou muito confusa. A avó disse-lhe que Deus é quem decide se vamos para o inferno ou para o céu quando morremos. A ideia de alguém existir e poder decidir isso assustou-a muito. No outro dia tinha comido um rebuçado às escondidas da mãe! E às vezes sujava as meias brancas e arranhava os joelhos quando brincava no jardim! Se calhar ia para o inferno...! A avó acalmou-a e explicou-lhe que só pessoas que fazem mesmo coisas muito más são enviadas para o inferno. Além disso Deus não toma decisões de ânimo leve, porque Deus é Amor. Ela não sabia o que isso queria dizer.
Pensava em todas as conversas que tinha tido com a avó. Tinha saudades dela. Esperava que ela estivesse no céu. Ia ter muito calor no inferno, além disso não devia ter piada nenhuma ver o que se passa aqui através do chão e da terra. Mas a avó era boa pessoa, de certeza que estava no céu. A mãe tinha-lhe dito que sim, que estava. Ela ficava feliz por isso mas cada vez tinha mais dúvidas e perguntas e tinha a certeza que a mãe não lhe saberia responder. Precisava mesmo da avó...
Com dez anos já era crescida o suficiente para perceber que não se devia portar mal porque Deus castigava e tinha de estar em silêncio na missa por respeito a Jesus. Mas ainda não percebia muitas coisas e a que hoje a incomodava mais era esta: estavam ali muitas pessoas tristes porque alguns familiares seus já tinham morrido e outras pediam ajuda porque tinham vidas muito complicadas. Aquele era o momento do dia em que supostamente não deviam pensar nessas coisas e deviam simplesmente ficar felizes porque estavam perto de Jesus, mas a verdade é que adoravam uma imagem de tortura que as recordava de como eram pecadoras e deviam ser castigadas. Ou seja, por cima de todo o sofrimento que já sentiam vinham também ali arcar com uma culpa que vinha de um acto cometido há mais de mil anos atrás quando elas ainda nem sequer tinham nascido! A avó tinha-lhe explicado que a fé significava 'acreditar' e que as pessoas tinham fé em Deus, acreditavam em Deus, porque ele era poderoso e podia ajudá-las e dar-lhes felicidade. Ela já tinha dez anos e ao fim de tantas vindas à igreja não via ninguém feliz. O padre continuava a ralhar, ao fim de dez anos, e as pessoas continuavam com o seu ar cinzento e pesado, às vezes com o olhar perdido no espaço, enquanto pensavam nos muitos problemas que tinham para resolver. Isto não fazia sentido para ela. Porque não acreditar no sol? Porque não ter fé nele? Ele nunca nos falhava. Depois da noite vem sempre o dia, ele está sempre lá ainda que não o consigamos ver, tal como Deus. Porque é que estas pessoas tinham tanta fé num Deus que deixou que matassem o seu próprio filho? Isso não era crime? E foi justo castigar um pelas culpas de muitos? Valeu a pena?
Tanto pensamento e dúvida fizeram o tempo passar mais depressa e quando deu por si a missa já tinha acabado, a viagem de regresso a casa foi tão torturante como a primeira e assim que se viu livre correu para o jardim. Estava mesmo um dia lindo! O céu estava azul, o sol brilhava bem alto!
- Mãe, tenho fome...!
- O almoço ainda não está pronto. Vou começar agora.
- Demora muito?
- Um bocadinho.
- Então vou brincar!
- Não sujes o vestido!
- Está bem!
Ariadne correu atrás de uma borboleta quando pelo canto do olho reparou em algo a mexer perto dos cedros. Pé ante pé andou nessa direcção com algum medo a formar-se no seu íntimo. Se calhar é só um gatinho perdido, pensou, e acelerou o passo perante o pensamento de uma bolinha de pelo fofinha. Entrou no labirinto. O pai não ia achar piada mas ela ia atravessar só dois corredores, sabia o caminho de volta. Ouviu barulho do outro lado da parede. "Bem, só mais uma, ainda estou perto da saída". Sentiu que o que perseguia se afastava de si mas estava ainda muito perto para poder adivinhar a sua posição. "Vou só até àquela esquina e volto para trás". Deparou-se com duas passagens diferentes e escutou barulho à sua esquerda. "Ainda estou perto da saída...!". Começou a correr ao sentir-se mais próxima daquele ser. "É um gatinho, só pode ser um gatinho...!", pensou enquanto a deslocação do ar lhe tornava a face fria. O vestido prendeu-se num galho e rasgou-se. Ariadne não percebeu e continuou a correr. Repentinamente parou. Ao fundo desse corredor via a sombra escura a mexer-se lentamente, cambaleante. "Aha, eu sabia que te apanhava!". Com as faces vermelhas e o vestido sujo deu a última corrida em direcção ao animal. Era um gato. "Eu sabia!". Mas neste momento era um gato morto. Ariadne chegara a tempo de o ver tombar inerte. Ao seu lado sibilava uma cobra mas Ariadne só a viu um segundo antes de ela a morder na perna.
Gritou de dor mas ninguém a ouviu. Caiu na relva, ao lado do gato, e olhou receosa para a cobra que se esgueirava por baixo da parede de arbusto forte. Pôs as mãos à perna, perto do sítio onde a cobra a tinha mordido. Notavam-se dois pequenos buraquinhos e um fino fio de sangue escorria pela perna. Sentia uma dor imensa e o próprio veneno a circular pelo corpo como fogo a queimar as veias e artérias. Deitou a cabeça no chão e olhou para cima. Via uma estrela no céu. Era já quase de noite. Passara todo o dia a correr pelo labirinto. Estava perdida, não se lembrava do caminho de volta e não conseguia andar. Estava assustada de morte. Olhou para o gato morto ao seu lado e vomitou. "Tenho medo", e começou a chorar.
Cada vez ficava mais escuro e cada vez estava mais aterrorizada. "E se ela volta? E se me morde outra vez?". Estes pensamentos e a dor permanente não lhe davam descanso e mantinham-na em total estado de alerta. Num momento de cansaço lembrou-se da avó e da forma como ela estava calma quando rezava. Decidiu fechar os olhos e rezar. Nunca o tinha feito e não sabia como o fazer. A avó dizia que Deus ajudava quem precisava de ajuda e que Jesus tinha feito isso durante toda a sua vida. Ela precisava muito de ajuda. "Deus e Jesus, estou com muito medo, dói -me a perna e não consigo andar. Quero a minha mamã. Desculpem-me por ter feito mal, sei que não devia ter entrado no labirinto. Desculpem-me por ter sujado e rasgado o meu vestido novo. Prometo que nunca mais faço nada de mal mas por favor ajudem-me! Por favor, ajudem-me! Por favor! Por favor...". Repetiu o pedido por tempo indeterminado e durante os períodos de febre altíssimos que teve nessa noite não cessou de pedir ajuda. De repente despertou e ao abrir os olhos viu que ainda era de noite. Chorou e desistiu de pedir ajuda. Parecia-lhe claro que Deus não estava para a ajudar. Que estupidez, pedir ajuda ao ar. Ela tinha era que pedir ajuda ao sol! Fechou os olhos novamente e pediu ajuda ao sol. "Por favor que seja dia, por favor, por favor... Sol, tu nunca me falhas. Que seja um dia lindo, que os meus pais me consigam encontrar... Por favor!". Adormeceu novamente mas desta feita possuída de uma força de vontade enorme e de um sentido de sobrevivência intenso. Sentiu luminosidade e abriu os olhos. Era de dia.
Ariadne sentou-se, encheu-se de força, e gritou. Gritou com vontade e determinação. Não tardou a ouvir vozes e barulho de machados. Dentro de pouco tempo a parede verde ao seu lado sofreu o derradeiro corte e o seu pai entrou, seguido de cinco ou seis homens que o ajudavam nas buscas. Mais tarde Ariadne veio a saber que pensavam que se tinha perdido no bosque ali perto, nunca pensaram em procurá-la no labirinto. Enquanto lhe contavam esta versão Ariadne só conseguia pensar em como o sol lhe salvara a vida. Não culpava Deus pela ausência de ajuda. Como é possível culpar algo que não existe?

sábado, 25 de abril de 2009

O bicho papão

Escondido debaixo das mantas, o menino aguardava. Envolto em medo o petiz esperava. O peso dos cobertores era um conforto. Lá fora, fora da cama, isto é, o quarto repousava no escuro. Lá fora, fora das quatro paredes, o vento rugia, os ramos das árvores batiam nos vidros (como num cliché de um desesperado filme de terror sem audiência). O tempo não estava para brincadeiras e a tempestade parecia avizinhar-se.
O garoto tremia, receoso, do papão que o viesse buscar. O papão, bicho mitológico de estórias desaparecidas que se parecia alimentar de carne de crianças inocentes, e garotos mal-comportados. O medo, mais que irracional era desnecessário pois se era de crianças que o papão se alimentava, este rapaz não tinha nada a temer. Criança era coisa que já não era ou pelo menos pensava não ser Estava naquela fase da adolescência, a incerteza e a insegurança toldavam-lhe o rumo a tomar, e o menino parecia perder-se cada vez mais nos seus medos. Mas esquecendo a idade do alvo, o gaiato tremia nervosamente, sentindo um tal pânico com nunca tinha sentido, destrutor de toda a possível razão. Resolveu aguardar e a ansiedade lá baixou. Necessitava de ajuda, companhia. Habituado a que lhe aquiescessem aos pedidos, resolveu sair da cama e dirigir-se ao salão na senda de um criado, a governanta ou mesmo o velho mordomo lhe fizesse companhia.
Pé ante pé, na semi-obscuridade, o garoto lá ia indo sem muito medo. Dez passos volvidos e o temor parecia descer. Ao fim do corredor, o medo parecia ter-se evaporado. Eis senão quando uma sombra na escuridão surge de um refugiado canto. O coraçãozinho a palpitar, a pele a suar, os membros do corpo a enrijecer e o miúdo já não saía do lugar. Estranhos rugidos gargalhantes pareciam assombrar a casa. Rangeres estranhos, suspiros abafados de quem não se quer excitar com a presa. Os olhos da criança brilhavam das lágrimas que lhe caíam. A sombra aproximava-se e não havia fuga. Chegava-se a ele como um estranho pano de seda: macio, leve e fresco... O terror apossava-se dos pensamentos do pequenino. O fim estava próximo.

Acordou no meio de sussurros e suspiros seus, encharcado no meio de suor. Estava seguro, estava a salvo, a manhã chegara. Atreveu-se a pôr os pés fora da cama. Nunca chegou a tocar no chão. Debaixo da cama esperava o comedor de crianças.

Porque meus petizes, não é no desconhecido que reside o desafio, não é do papão que devemos ter medo, não é do escuro nem dos ruído da noite... O medo não passa disso mesmo, medo.
O problema é quando nos deixamos tomar por ele. A criança não morreu obviamente. Apenas tropeçou num desterrado brinquedo e caiu de boca no chão. Ninguém o manda ser desarrumado.

Caranguejola

Não iriam acreditar no número de frases que comecei para vos escrever hoje, mas achei por bem ir directo ao assunto, sem rodeios pretensiosos e chatos.
A minha colaboração n'O Colectivo de Contadores chegou ao fim. Não é minha obrigação dar qualquer tipo de justificação, mas sinto que o simples abandono deste blog poderia levar a conclusões precipitadas. Os motivos são os de uma deficiente organização e desleixo em alguns trabalhos. Tendo eu dois blogs em nome próprio e duas colaborações, a gestão do tempo tem sido feita mal e porcamente, o que leva à falta de qualidade em alguns textos, o que não me agrada a mim nem a quem lê, por poucos que sejam.
Assim, e não menosprezando o trabalho daqueles que aqui escrevem, decidi que o "sacrificado" (ou talvez não) seria o Colectivo, já que é um trabalho muito idêntico a outro feito num blog próprio.
Foi um gosto enorme escrever neste espaço, mas decisões têm que ser tomadas, e espero que aceitem esta com a mesma lucidez e pesar com que a tomei.
Podem sempre ir a http://achuvamolhada.blogspot.com, ver como é que estou, mas aqui não voltarei a escrever. "Nada mais a fazer" dizia Sá-Carneiro, "O menino dorme. Tudo o mais acabou."

quinta-feira, 23 de abril de 2009

amo-te porra

Foi numa manhã negra e sonolenta que vi pela primeira vez aquela frase, escrita porcamente a spray azul num bloco de betão ríspido e frio. "amo-te porra", escrita assim, sem maísculas nem pontuação, foi ali pntada durante a noite, por alguma alma apaixonada que quis mostrar os seus sentimentos mais profundos não só à alma amada como também ao pequeno universo de pessoas que passam pela rotunda onde o bloco de betão está instalado.
Alvo de comentários trocistas durante os primeiros dias de exposição, a frase rapidamente se tornou banal, até fazer parte natural da paisagem fria e grosseira das obras de alargamento de uma estrada, em que ninguém parecia mais reparar. Quando finalmente a estrada passou a ter duas grandiosas faixas de cada lado, o bloco de betão desapareceu sorrateiramente, não deixando saudade aos automobilistas, sedentos de velocidade e ultrapassagens.
Não são poucas as declarações públicas escritas no alcatrão da estrada, numa placa de direcção, numa parede, num sinal de trânsito. No entanto, este "amo-te porra" toma um significado especial na sua categoria. Não é pela maneira como foi escrito, felizmente este obedeceu aos cânones oficiais: escrito com spray de pouca qualidade, letra minúscula, mas à máquina, com o mesmo requinte que um "o governo é merda!" ou um "SLB filhos da puta", esta frase apenas difere no seu conteúdo. O normal é haver um nome associado ao verbo amar ou ao seu equivalente na língua inglesa, não uma grotesca expressão de aborrecimento e indignação como é a palavra "porra". Mas é neste ponto que o autor da frase inova: ao não nomear ninguém, não corre o risco de ser humilhado no caso daquele amor terminar, como acontece tão frequentemente na vida. "amo-te porra" é intemporal e impessoal: o ser humano irá sempre amar, quer seja a Maria, a Inês, a Joana, o Manel, o Carlos ou o Francisco. O indivíduo que ali escreveu aquelas singelas palavras não terá provavelmente a noção da sua importância: serviram de riso àqueles que, desde sempre amados, troçam da patetice deste tipo de romantismos; serviram de preocupação àqueles que tomam qualquer inscrição num espaço público como um acto cataclísmico de vandalismo; serviram de consolo aos altruístas que se sentiram felizes por saber que há lá fora gente feliz, que ama; serviram de desgosto aos infelizes, sendo aquelas letras uma provocação à sua solene tristeza.
E pouco mais há a dizer sobre isto, o mais provável é que continuem a surgir risos aquando da memória das palavras escritas naquele local. Mas eu vos digo, aqui sentado numa cadeira de escritório, virado para este crepúsculo nojento, vestido com um robe velho que me pica a pele, que furava os olhos e rasgava a boca por umas palavras semelhantes.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

O homem e o seu cavalo...

O cavalo galopava freneticamente pela floresta. Segundo a segundo a sua velocidade aumentava. Curtos clarões de negro espalhavam-se pela floresta. A única coisa que mantinha o homem ainda em cima do cavalo era o dever porque a força já à muito havia sido consumida. A armadura pesava-lhe, o suor cegava-o, o calor matava-o. Apenas o dever o mantinha vivo. O dever, o maldito dever. A vontade régia que o cingia a um contrato que não queria honrar. Mas o passado não lhe interessava agora.
O cavalo acelerava por entre os carvalhos sem que se lhe fosse dada nenhuma ordem. A mente do homem confundia-se com a mente do cavalo, uma só mente meio homem, meio animal que governava um ser de seis pernas e dois braços que se movia inconscientemente pelas sombras. No alto das árvores, as sombras também se moviam. Mais rápidos do que o olho humano pode processar, os vultos saltavam de árvore em árvore, de ramo em ramo de folha em folha. O peso não os atrapalhava, a matéria não os entravava.
O incauto cavaleiro seguia o seu caminho o mais rápido que podia. Inconsciente do perigo que corria. O cavalo galopava ofegante, consumindo a réstia de energia que tinha. A noite alastrava-se pelo céu como tinta num charco.



Três homens caminhavam lentamente pelo chão da floresta. Seguiam marcas de sangue à muito deixadas naqueles trilhos. Rapidamente chegaram ao seu destino. Dos ramos pendiam restos de homem, restos de animal, uma visão grotesca para o homem comum. O sangue fora-lhes extraído dos corpos como precioso néctar. Nos chão, a escrita dos vampiros avisava:
"Idiota é o homem maldito que julga fugir à maldição. Pois da maldição nem a morte os liberta."

Os três homens entreolharam-se. O primeiro tinha caído. Apenas três faltavam. Aproximaram-se do homem e rasgaram-lhe a armadura com as mãos. No seu pescoço seis pequenos buracos ainda pulsavam. Um pequeno pendente balouçava ao sabor do vento. Eis a primeira chave.
Os três homens esperaram a noite cair. Assim que o último pedaço de sol desapareceu por detrás do horizonte e a noite se apossou do mundo, os homens desfizeram-se na sombra e dirigiram-se ao próximo alvo.