sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

A Peste

Era uma vez um rei, uma rainha, uma princesa, um príncipe, uns coelhos, uns cavalos e esses bichos que normalmente aparecem nos contos de fadas. Um dia morreram todos mas deixaram uma história escrita:

O mundo é mau, feio, cheio de cheiros estranhos e gente ainda pior... Mas há sempre uma pessoa que faz esquecer tudo isto e passar a ver tudo com olhos diferente, mais smpáticos e alegres! Pois bem, o meu mundo tinha 3 pessoas e meia dessas, então em vez de ver tudo mais-que-bonito, ora via tudo colorido ora via tudo cinzento... É o preço a pagar, dizia uma vozinha interior que matei mais no fim da história. Bem, deixa-me explicar isso das 3 + 1/2 pessoas: havia a do sentimento puro, que já tinha sido o suficiente mas que depressa deixou de o ser (mas sem me conseguir desfazer dele...); a outra pessoa era do puro desejo, aquela coisa física que...coise, que me transformava noutra quando estávamos sozinhos; depois havia a que juntava estas duas anteriores mas que não me fazia esquecer nenhuma delas. Ah, falta a meia, né? Essa foi um deslize, uma fraqueza quando as 3 outras pareciam estar a fugir, seria irrelevante se tivesse ficado no seu cantinho sem me chatear...
Como já deu para perceber, eu estava a desafiar os Contos de Fadas e o escritor, que era muito conservador, não estava a achar piada nenhuma. Fez de tudo para a história voltar aos eixos: tentou que engravidasse mas esqueceu-se que eu estava a tomar a pílula, mandou as 1 das pessoas para o outro canto do Reino mas eu aprendi a andar de cavalo, fez com que os meus pais apadrinhassem (o adoptar da época) outra das 3 mas nós sabemos ser bem discretos, arranjou vários papéis para a outra mas nós conseguimos arranjar um tempinho... Ele estava absolutamente pasmado! Como é possível alguém ter tantas vidas secretas?, pensava ele todas as noites... Até que se lembrou de pôr a 1/2 na história! Sinceramente, estou envergonhada de admitir que ele quase ganhou com esta!! Mas apesar de eu não saber ao certo se mais alguém ficou a saber, acho que lidei bem com a situação... Enfim, eu até estava a gostar deste jogo perigoso, esta adrenalina fazia-me sentir tão viva!, mas o escritor abominava tudo isto e não queria dar o braço a torcer. Estava disposto a deixar-me infeliz só para o seu Conto ser tradicional e cheio de "valores"... Quando viu que eu não iria permitir tal coisa tomou a decisao mais importante de todas: criou a Peste. Matou o Reino todo mas ainda está convicto de que antes mortos que imorais.

Agradeço a atenção.
Se encontrarem este escritor dêem-lhe, por favor, o maior encherto de porrada que conseguirem.

Atenciosamente,
A princesa.

O caçador

(para ler ao som disto)

A faca retinia no osso como um badalo de um sino. Movimentos artísticos manchavam, marcavam e sujavam. Corte a corte a vítima esvaía-se. Uma dança descompassada de braços e mãos trouxera o horror a um pobre corpo onde antes existia uma Vida. Não tinha sido um morte violenta. Não tinha sido sequer excitante. Apenas uma saciação funesta de um desejo. Não era sexo, não era droga, era melhor. Era o calor, o cheiro, o sabor férreo do sangue. Algo que não conseguia descrever. Um impulso, uma obsessão. Mas ainda assim, o que o mais excitava não era o sangue, não era matar, não era o doce som do gorgolejar do sangue a acumular-se onde antes estava uma traqueia. Era a caça. A procura incessante de um alvo frágil, de um esboçar de um movimento de fraqueza e permissão.

Na rua as horas passavam como se o tempo se apressasse para chegar a algum lugar...

Retalhara o corpo até se desfazer numa papa escarlate e branca. Desfizera-se no seu próprio prazer. Descansava agora prazenteiramente sob as cobertas de lã. Quem para si olhasse diria tratar-se de um anjo, de louros caracóis e de pálida tez. De traços simples e atractivos era o deleite de olhares menos prudentes. O único defeito que tinha era o interior. O pequeno demónio alojado no seu corpo. Mas nos seguintes dias poderia descansar, ele e a cidade... Mas dentro de menos uma semana estaria de volta às ruas. Um caçador, precisa afinal de caçar.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

"Avance até à casa de Partida"

Permeava-lhe os olhos uma larga camada de lágrimas, daquelas que fazem os olhos vermelhos, inchados e que cansam as pálpebras. O seu esforço para não chorar era quase hercúleo. Não queria desfazer-se em mil pedaços cristalinos em frente deles. Não o mereciam.
Já há muito que não tinha uma tão súbita vontade de chorar assim. Lembrava-se da primeira vez, de quando o seu pequeno peixe dourado havia fugido cano da sanita abaixo; e da última vez, quando proferira a derradeira despedira da sua mãe. Das duas vezes fizera o mesmo que fazia agora: mostrar-se impávido e sereno como quem descasca uma cebola e não quer parecer fraco. Mas desta vez era diferente, desta vez sabia que não teria mais um momento só, que o seu desespero seria mais tarde ou mais cedo revelado. Os olhos pesavam-lhe. Da dor, do sono, do peso da vida, do medo...
Olhou em seu redor. Das outras quatro pessoas que ali estavam apenas três estavam em pé e vivas. A quarta, inerte no meio do chão, já partira há minutos. Tinha sido uma boa vida, teria boas memórias para partilhar se ao menos o pudessem chegar a ser.
Dos três que estavam de pé apenas um o mirava. De olhos vivazes e de estatura mediana, o jovem estava visivelmente assustado. Principiante.
Dos dois que não o miravam apenas um trazia a pistola de fora. Desconfiado.
O que restava remexia violentamente as caixas para encontrar o que procurava no sítio que lhe indicara. O veterano.


Um abafado "A-ha!" ecoou pela morta sala. A caixa de Monopólio foi puxada de debaixo de uma panóplia de jogos de tabuleiro e foi posta numa silenciosa mesa. A tampa foi parcimoniosamente aberta e num misto de excitação e horror o veterano esgazeado voltou-se para o homem prostrado no chão.

"Perguntaste pelo dinheiro, e eu disse que não o tinha. Tornaste a perguntar, disse-te que o dinheiro que tinha estava na caixa de Monopólio" foram as suas últimas palavras... O estampido parecia-lhe ter-se feito ouvir já à muito mas continuava a chorar. Os pequenos cristais que lhe rolavam pela face pareciam inundar-lhe os pulmões.Voltou à posição fetal e continuou a chorar durante o que lhe pareceram ser meses.

Quando voltou a abrir os olhos chorou de goelas abertas, como se disso dependesse a sua vida. Grandes e fortes mãos carregavam-no para um lugar mais terno, para o colo da sua mãe.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

A vida é uma incógnita

A paragem do autocarro habita um lugar particularmente inóspito. Localizada bem no centro de uma gigantesca avenida, quase nunca recebe a luz solar, sempre mergulhada na sombra das torres de escritórios que se apresentam à sua frente e atrás de si. Só pela uma da tarde é que aquele banco de metal, tapado por placas de metal atrás e dos lados, recebe uns restinhos de sol, que não chegam para fazer a fotossíntese a um trevozinho. E se durante o dia a paragem se revela um local sombrio e inospitaleiro, o que dizer da noite. Quase ninguém lá apanha autocarros; pelas nove da noite, que é quando este episódio se passa, já tudo está em casa, ninguém já está a trabalhar, o centro da cidade está desconfortavelmente deserto. Mas X, o nosso personagem, é excepção à regra. Guarda de um edifício de escritórios, só está autorizado a sair às oito e quarenta e cinco, quando o seu turno acaba e o de outro começa. E agora que o alarme tocou, quase que corre pelos corredores do prédio, embora mantenha a dignidade e consiga controlar todas as acções que derivam de um sentimento tão comum entre os mortais, a suadade. Portanto, vai a andar, passo largo e acelarado, para a sala de pessoal, despir a farda e vestir a roupa de todos os dias. Não há tempo para um duche, o autocarro parte às nove e sete e a paragem ainda fica longe. Ao sair do edifício, cruzou-se com o seu colega que vai agora trabalhar, cujo nome é também uma incógnita, não por capricho de um adolescente contador de histórias, mas porque não sabe mesmo o seu nome. Nunca trocaram mais que boas noites, para esse grau de intimidade não é preciso saber o nome.
Agora, fora da torre de escritórios, longe das câmaras de vigilância, X já pode correr, agora mais impelido por um infantil medo do escuro e do silêncio da cidade do que propriamente pelas saudades da esposa e do filho. Nos passeios, o rodopiar do lixo no chão contrasta com os milhões de passos que são dados durante o dia. Toda aquela selva de betão assusta-o, a altura vertiginosa dos prédios, o silêncio que perscruta as ruas vazias, o voo dos morcegos do medo e o grito dos corvos do receio.
Chegou finalmente, e ofegante, à avenida. Já avista a paragem, iluminada pela ténue luz de um candeeiro alto e velho. Olhou para o relógio, nove e dois. Ainda tem tempo, escusa de ir a correr, até porque faria uma figura ridícula em frente a um vulto que avista na paragem. Aproveitou para recuperar o fôlego e abrandar o batimento cardíaco, embora o rosado nas faces não vá desaparecer assim tão rápido. À medida que avança, o vulto torna-se mais nítido. É um homem, barba negra e cabelo desgrenhado, dedos entrelaçados entre os joelhos, cabeça encostada a uma das paredes da paragem, de olhos fechados e expressão sofredora. X sentou-se tentando fazer o mínimo barulho possível, para não acordar o homem. Em vão, bastou uma das nádegas de X repousar no metal para o estranho acordar sobressaltado. Olhou para X, esfregou a cara, abriu os braços num espriguiço e disse, com voz rouca e hálito a aguardente,
- Boa noite.
X respondeu com as mesmas palavras com uma timidez de criança assustada. Não gostava de problemas, e pessoa embriagada é quase sempre sinónimo de alguns. Pergunta-se o leitor como é que alguém tão assustadiço, tão frágil, mimado até, chegou ao posto de guarda. Bem, não só o coração tem razões que a própria razão desconhece, pelos vistos também este X tem essa característica.
- Está frio, disse o homem esfregando as mãos.
- Pois, balbuciou X.
Seguiu-se um pequeno silêncio. X olhou para o relógio: nove e seis. Esperava ansiosamente pela vinda do autocarro.
- Ouça, vou contar-lhe uma anedota.
Neste momento, X sentiu que o corpo lhe expulsara todo o líquido que tinha através dos poros. Este vulto seria, muito provavelmente, um daqueles maníacos que gosta de brincar com as vítimas antes de as decapitarem ou coisa que o valha. Ainda assim, X deixou-se ficar quieto, não respondendo. O estranho continou:
- Estão duas mulheres, tias do Jet Set, a jantar numa taberna no Entroncamento. Uma delas diz "Meu Deus, a comida daqui é horrível." e a outra responde "Sim, eu sei, e ainda por cima as doses são tão pequenas...".
O vulto riu ruidosamente, X manteve-se calado e olhou para o relógio. Nove e nove, o que se passaria com o autocarro?
- Sabe, esta piada aqui, resume mais ou menos a nossa vida. Cheia de solidão, tristeza, sofrimento e infelicidade e ainda passa demasiadamente depressa.
Os faróis do autocarro já se viam ao fundo da avenida. X, embora tivesse ouvido tudo o que o homem dissera, mantera-se imóvel. Olhou de soslaio quando ouviu alguns soluços e viu o estranho a chorar ao seu lado, como um bebé, as lágrimas a deslizarem pelo rosto imundo e indo-se depositar nos pêlos da barba. Como que atingido por um raio de piedade, X colocou a mão sobre o ombro do homem e perguntou
- O que se passa? Precisa de alguma coisa?
Já iluminados pela luz dos faróis do autocarro, o estranho voltou-se para ele e disse-lhe com uma dolorosa mágoa na voz,
- Preciso homem! Preciso de um abraço!

Apesar do atraso do autocarro, X chegou a casa à hora de sempre. Entrou na sua sala como se fosse um general vencido, cabisbaixo e pálido. A mulher foi ter com ele, dar-lhe as boas vindas a casa. Ele respondeu-lhe com um olhar vazio e um beijo no rosto.
- Vou-me lavar, disse.
O que se passou no interregno da viagem de autocarro, fica o leitor com o poder de o imaginar. Certo é que X, depois de despir, de caminhar para o poliban e de se pôr debaixo de água se deixou lá ficar por quase uma hora. E um pouco de água salgada misturou-se com a água doce que caía do chuveiro.

(livremente inspirado em Annie Hall, uma crónica que li algures e na vida de todos e de cada um)

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Silêncio

... e agora as tequillas davam um ar da sua graça acentuando a sensação de desequilíbrio que era já tão evidente. Não sentia frio nem cansaço e apesar da energia, sentia-se a mover em câmara lenta, personagem principal num filme mal focado e mal iluminado. Fez mais uma pausa e olhou para ele, mais acima na rua íngreme. Ele subiu ainda mais uns passos, até que percebeu que ela parara, outra vez, no meio da estrada. Parou também e observou-a, estático. Ela tentou perceber em que é que ele pensava mas não conseguiu adivinhar o que lhe passava pela cabeça. Não viu um sorriso nem um ar de reprovação. A sua expressão era neutra, o seu olhar demasiado enigmático.
Nesse instante os faróis de um carro a aproximar-se iluminaram as fachadas dos prédios perto de si e ele subiu para o passeio. Ela não se mexeu. Não conseguia perceber de que lado o carro vinha e estava a tentar decidir para que lado se desviar. Sentiu o motor a aproximar-se e começou a transpirar. O seu instinto de perigo bloqueou o raciocínio e a sua cabeça inundou-se com um flash.
Ele correu para ela, puxou-a por um braço e encostou-a a um dos muitos carros estacionados naquela rua. Nunca lhe largou o braço e deixou-se estar encostado a ela. Foram apenas segundos.
Sem uma única palavra, ainda em silêncio, ele largou-a e afastou-se, recomeçando o andar.
Ela não deixou. Instintivamente, agarrou-o por um braço, da mesma forma que ele a tinha agarrado a ela.
Fixaram-se. Olhos nos olhos. E no silêncio da madrugada fria, aquele olhar que dizia tudo era tão dolorosamente vago. No seu íntimo os dois desesperavam em busca das palavras certas, mas sem sucesso. Desconheciam que naquele momento não existia uma única palavra que fosse a correcta. O silêncio preenchia todos os espaços vazios. O brilho dos seus olhos era suficiente. Tudo o resto era supérfluo. Cada um dentro de si, ainda lutando contra a verdade, procurava uma resposta, uma atitude a tomar. Lutavam por uma qualquer ideia sobre o que fazer a seguir, algo que conseguisse preencher o silêncio sem o estragar. Nenhum se atreveu a abrir a boca. Nenhum deles mexeu um músculo. Deixaram-se estar. Lutando contra si próprios, sozinhos no mundo. Ambos se esforçavam por dizer tudo o que sentiam e em que pensavam através do olhar que os prendia ali.
Uma luz etérea voltou a iluminar a fachada dos prédios. A noite quebrou-se em pedaços de cristal negro. A ligação desfez-se. O momento morreu.
Olharam o chão e prosseguiram o seu caminho, com o silêncio ainda a preencher todo o espaço entre eles.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Cosy

Olhava para a borboleta e admirava os seus movimentos suaves e leves, provocados pelas ondas de calor que subiam até ao tecto. Deitada na cama, de olhos vidrados, tentava focar a mancha desfocada de tom laranja que oscilava calmamente. Nenhum pensamento na sua mente, nenhum músculo mexia. Vagueava no limiar dos sentidos, ausente do corpo jovem que a ancorava a este mundo. Não tinha memórias nem desejos para um futuro próximo ou não. Neste momento não tinha vontade, não tinha espírito, não tinha alma. Nem sequer estava em transe. Não era uma pessoa, na verdadeira acepção da palavra. Neste momento era o corpo inerte deitado na cama. Se respirava não tinha consciência de o estar a fazer.

A borboleta ficava cada vez mais desfocada.

Lá fora, depois daquelas paredes, para lá da porta, havia vida, movimento, confusão, barulho, vontade. Para lá daquela porta que a separava da realidade uma míriade de objectos e cores e sons e cheiros e pessoas era misturado num cocktail de vida e preocupação. Para lá daquela porta corações batiam descompassados, agitados. Amigos e desconhecidos uniam-se num único objectivo. Mas para isso tinham de passar aquela barreira.
Batiam à porta em desespero, gritavam e calavam-se, esperando uma resposta.

Um vulto aproxima-se da cama. Fala com ela, faz-lhe perguntas.
- A casa está a arder! - ouve uma voz gritar lá fora - Alguém pegou fogo à casa!
"Eu sei...", pensou. "Fui eu".
Continuou em silêncio, a olhar a borboleta, a mancha laranja, cada vez mais envolta em fumo negro.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

A escrivaninha

"Quando era mais criança, o teu pai sentava-se àquela escrivaninha a ler grandes livros de coisas que eu nunca percebi bem o que eram..." dizia uma avó embevecida a um irrequieto e pequeno neto. Contava-lhe os tempos que o jovem não tinha vivido, tempos de ouro esbatido com o tempo mas que retinham o seu valor. O petiz ouvia embalado na cândida voz da sabedoria. Ouvia histórias e estórias sobre a vida de outrora, sobre a geração anterior à dele e da geração anterior a essa e com todas o pequeno rapaz aprendia. Dentro dele pequenas sementes eram plantadas e regadas para um dia germinarem. E horas depois, depois da história do seu nascimento, o pequeno garoto levantou-se do colo da imóvel avó e dirigiu-se a casa, duas portas acima passo a passo. Bateu à porta e atendeu-lhe a mãe exclamando, num tom demasiado alegre e estridente, um "Tão cedo? Já te fartaste das histórias da avó?". A única coisa que o rapaz respondeu foi um penoso mas duro "Mãe, a Avó morreu."

O petiz cresceu um pouco com os anos, aquele efeito secundário de que ninguém quer padecer, e foi visitar a campa da avó. Haviam passado exactamente dez anos. Todos os anos ali passava naquela data, todo os anos lhe relatava o que tinha aprendido, o que tinha crescido.
"A escrivaninha mantém-se no mesmo sítio. Passei lá ontem a noite, entre os livros do Pai e o café que me ensinaste a fazer", contava-lhe o neto. Nunca tinha chorado a morte da Avó, nem a morte do Pai antes dessa. Da morte do Avô não se lembrava, tinha acontecido antes mesmo de ele ter sido devidamente planeado. Uma morte brutal numa qualquer Guerra ceifeira de vidas. A única coisa que tinha dele era o olhar, dissera-lhe uma vez a Avó. Um olhar partilhado também pelo Pai.
As histórias do ano que tinham passado eram contadas em fiada, umas a seguir às outras. quando terminou, depositou o pequeno ramo de violetas sobre a campa e virou-lhe costas por um ano. Ao chegar a casa, pôs a cafeteira ao lume e pôs-se em frente à grande pilha de livros e folhas que ocultavam a velha escrivaninha...

Anos e anos se passaram. Nascimentos, mortes, tragédias, alegrias... O leve passar dos anos como vem sendo habitual...

"Quando era mais criança, o teu pai sentava-se àquela escrivaninha a desenhar enquanto eu lhe lia os velhos livros do meu Pai" dizia um avô saudoso a uma calma e atenta neta ao seu colo... E uma vez mais as sementes eram lançadas em novas e férteis terras enquanto as velhas plantas murchavam pela última vez...

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