O ser nasceu, cresceu, morreu. Tinha feito tudo como lhe tinham mandado os funcionários do guiché das repartições de novas almas. Seguiu todas as indicações e conselhos dados antes de sair disparado da vagina de sua mãe. E agora estava ali especado, numa fila interminável para aquisição de novo corpo. Tinha acabado sozinho, morto numa cama de um lar qualquer, abandonado pelos filhos, sobrinhos e netos. Da outra alma que o acompanhou na sua primeira vida nunca mais ouviu. Havia transitado de estado há tempo demais e se tivesse adquirido um novo corpo até já devia estar a meio da sua adultez.
E vai daí talvez não que isto de adquirir um novo corpo é coisa que demora e a fila parece nem andar. Estava ali parado há quanto tempo, mesmo? Bom, a bem ver já nem se lembrava de há quanto tempo tinha morrido! E tinha sido a sua primeira morte, imagine-se! É coisa digna de ser memorizada!
Olhou para as almas que tinha à frente. Que monotonia. Todas iguais, coisas incorpóreas sem uma forma definida, todas partilhando a mesma falta de tom, a mesma falta de cor, a mesma... coisa indescritível que faz com que uma alma seja uma alma. E estavam todas tão caladas. Se pensasse bem nem sabia se as almas podiam de facto falar.
Suspirou (ou fez o equivalente para uma alma) e voltou a focar-se nos seus pensamentos.
Morrer não tinha sido assim tão mau. Quer dizer, morrer sozinho e abandonado foi, mas passar de um lado para a porta não tinha sido, de todo, desagradável! Assim que o seu corpo fechou de vez os olhos do outro lado, a alma foi encaminhada para uma salinha cor de carvão onde todos os desígnios da Vida eram explicados. Pesquisar pelos seus arquivos era, obviamente, facultativo. Mas já que se ia esquecer de qualquer maneira de todo a Vida anterior e de toda a fase de transcendência, porque não dar uma olhadela. E o que viu deixou-o abismado.
Éons pareceram passar antes de chegar a sua vez. Vogou em frente (porque as almas não andam) e entrou na nova saleta. Daqui para a frente era fácil, sofria-se uma lavagem e estava-se apto a ter uma nova vida. E assim foi.
Assim que os funcionários do guiché da repartição de atribuição de novos corpos abriram o alçapão a alma fechou o equivalente aos olhos e deixou-se levar, deixou apagar tudo o que trazia dentro de si, toda a preocupação, toda a comoção, toda a memória...
E eis que chega o momento em que os olhos do corpo se abrem pela primeira vez. E assim que percebe quem o carrega, a última memória da alma deixa de existir. Pois quem o trazia aos braços era o corpo da alma que a primeira vez o acompanhou.
segunda-feira, 24 de maio de 2010
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